À SOMBRA DO ESPINHEIRO


À SOMBRA DO ESPINHEIRO

 

Há na Bíblia uma alegoria muito interessante que retrata, de forma simbólica, algumas conjunturas históricas.

Antes de recontar a alegoria, vamos conhecer um pouco a situação em que ela foi criada.

Depois que entrou na Terra Prometida, Israel não se preocupou em ter um rei. Na verdade, eles acreditavam que, se as pessoas fossem fiéis a Deus, obedecendo Sua vontade, tudo correria bem. Bastava praticar a Lei de Deus e as pessoas respeitariam umas às outras, haveria solidariedade, os mais fracos – pobres, órfãos, viúvas, estrangeiros – seriam protegidos pelo próprio povo. Assim sendo, por que criar uma estrutura de poder com rei, militares, policiais, burocratas, políticos? Bastava seguir a Lei de Deus.

Entretanto, lá pelas tantas, um homem chamado Abimelec decidiu que devia haver um rei e que o rei seria ele. Conseguiu o apoio de algumas pessoas, contratou uns milicianos e, após, matar seus rivais (seus irmãos), foi proclamado rei pela tribo de Siquém e pela fortaleza de Bet-Melo.

Entretanto, seu irmão mais novo, Joatão, conseguira escapar da matança. Esse jovem corajoso foi até o povo de Siquém, que elegera Abimelec, e contou a seguinte alegoria:

Um dia, as árvores da floresta se reuniram para escolher alguma que reinasse sobre elas. Disseram, então, à oliveira:

- Vem reinar sobre nós.

A oliveira recusou:

- Vou renunciar ao meu azeite que fortalece as pessoas para me balançar sobre vós?

Convidaram em seguida a figueira que também recusou:

- Vou renunciar ao meu doce fruto para me balançar sobre vós?

Apelaram à videira, que rejeitou o convite dizendo:

- Vou renunciar ao meu vinho que alegra os corações para me balançar sobre vós?

Por fim dirigiram-se ao espinheiro, que respondeu:

- Já que quereis que eu vos governe, venham repousar sob a minha sombra.

 

Essa alegoria revela um aspecto importante e paradoxal da natureza humana.

Em tese, o ser humano, além da satisfação de suas necessidades básicas, deseja ser livre. Sem entrar na discussão dos possíveis significados e alcances da palavra “liberdade”, atenho-me ao conceito básico de que ninguém quer que seus direitos de expressar suas ideias, de se reunir com seus semelhantes, de ir e vir etc. sejam tolhidos. Até se entende que, em situações excepcionais, por razões também excepcionais, possa haver uma restrição temporária a alguns desses direitos. Porém a regra é a liberdade.

Contudo, tem-se visto, ao longo da história, ocasiões em que um grande número de pessoas deseja que se implante um sistema autoritário, ou seja, algo que vai restringir suas liberdades. No Brasil mesmo, nestes tempos atuais, vimos grupos de direita saindo às ruas para pedir o retorno da ditadura. Ou seja, pedem que se instale um governo que acabe com suas liberdade fundamentais. Se lhes é dito que a Constituição proíbe qualquer ato que peça o fim da democracia, eles respondem, contraditoriamente, que eles estão exercendo o direito de se manifestar. Quer dizer: estão usando o direito de se manifestar para pedir o fim desse direito.

Enfim, embora a liberdade seja o elemento essencial da natureza humana, parece que há gente que não quer ser livre.

Por outro lado, sempre há pessoas que querem se impor sobre as outras e que são capazes de qualquer coisa para conseguir o poder, como Abimelec, que matou seus irmãos para não ter concorrentes. Esse tipo de pessoa quer o poder pelo poder. Fará de tudo para o conquistar e mantê-lo. Seu discurso é agressivo e até mesmo violento, geralmente utilizando frases de tipo patriótico e moralista. Para fortalecer sua postura agressiva, inventa alguma espécie de inimigo que deve ser eliminado (pode ser um país estrangeiro, um grupo ideológico ou algum segmento da população). Geralmente, essas pessoas têm uma personalidade sociopata: não têm sensibilidade ou empatia para os problemas dos outros, não têm escrúpulos éticos (mentem, se desmentem, usam os outros até quando lhes interessa etc.), não aceitam ser “limitados” por leis, pois se sentem superiores. Além dessas características e outras, uma que é especialmente perigosa é a de acharem que todos estão conspirando contra eles.

 Como sabemos, houve vários personagens com esse perfil psicológico: déspotas orientais, imperadores romanos etc. O século XX viu no poder pessoas assim, sendo Hitler, Stálin, Mussolini os mais conhecidos. Exemplos contemporâneos são Trump e Bolsonaro que têm um comportamento bem característico desse tipo de personalidade: atuam e falam de forma agressiva o tempo todo, estão sempre vendo inimigo em qualquer um que discorde deles, apresentam-se como os únicos líderes capazes de combater os “terríveis inimigos” que são o comunismo, a China (ainda acham que a China é comunista!), os venezuelanos, os homossexuais.

O que é mais incompreensível é que esses governantes contemporâneos foram eleitos, diferentemente dos déspotas e imperadores que se impunham na base da força.

Porém, a alegoria mostra o outro lado da moeda: há pessoas dispostas a apoiar essa forma de liderança. Admiram essa agressividade do líder, achando que é demonstração de coragem. Alguns estudos mostram que existem personalidades que têm necessidade de ser conduzidas, que precisam de um líder, não importa o conteúdo do que ele diz. Essas pessoas ficam impressionadas com a imagem de homem forte que esse líder demonstra. Elas ficam entusiasmadas com a segurança que ele exibe e, mesmo que ele diga alguma coisa absurda, seguem sua orientação sem questionar.

Há outro tipo de pessoas que adere a esse jeito de autoridade por razões mais psicológicas. Ou seja, carregam alguma insatisfação ou frustração e acham que tal personagem representa aquilo que sentem em seu interior, mas que, devido ao controle social, sempre esconderam ou abafaram. Isso pode significar liberar seus instintos agressivos, seu racismo, sua homofobia e lhes dar coragem para expressar rancores ou raivas ocultas.

Outro grupo que costuma apoiar essa liderança são os militares e policiais. Muitas vezes eles se sentem subestimados, pois acham que a sociedade não valoriza suficientemente a bravura com que enfrentam perigos para garantir a segurança de todos. Esses “líderes” em busca de poder sabem disso e buscam se aproximar e agradar a esse grupo de modo especial, pois a sustentação de seu poder se dá essencialmente pela força das armas.

Há também aqueles que carregam dentro de si um impulso de morte (como diria Freud), que é uma espécie de instinto violento, de modo que estão sempre querendo brigar, matar, dar porrada. Esses, numa sociedade organizada, são controlados pelas leis e instituições. Quando encontram alguém que dá sinais de que também possui esse instinto agressivo, eles se identificam com ele e o apoiam incondicionalmente.

É claro que existem também os oportunistas, mas sobre esses não é preciso dizer muito, pois apenas fazem o jogo que lhes interessa.

Então, a alegoria da “FLORESTA QUE QUERIA TER UM REI” mostra um aspecto sombrio da natureza humana: sempre há um espinheiro querendo ser o maior e sempre há árvores que apoiam espinheiros.

 

Voltando à história bíblica, sabemos que, infelizmente, aquela utopia de uma sociedade sem governo não foi possível. As pessoas acabam precisando de uma estrutura social que as controle. Por isso, anos depois, Israel acabou se tornando uma monarquia, para tristeza do profeta Samuel que fez questão de avisar sobre os riscos de ter um rei. Entretanto, em Israel, houve o cuidado para que não se achasse que o rei era um deus e senhor do povo. Por isso, o rei deveria ser consagrado a Deus (= messias) para que fosse um executor da Vontade de Deus diante do povo. Para isso, o rei-messias teria três funções principais:

  1. construir a união do povo para que o povo fosse forte;
  2. garantir que o povo vivesse em liberdade;
  3.  estabelecer a justiça, sobretudo cuidando dos mais necessitados (órfãos, viúvas e estrangeiros, na linguagem bíblica).

No Brasil, hoje, e em vários países, infelizmente, há governantes que fazem exatamente o contrário disso:

a) promovem a desunião e o radicalismo, agredindo e instigando seus seguidores a atacar os que discordam dele;

b) fazem discursos antidemocráticos e levam seus seguidores a atacar as instituições democráticas;

c) querem que o judiciário esteja a serviço deles, apoiam os interesses dos poderosos, acobertando seus crimes ambientais, trabalhistas etc. e não têm a menor preocupação com os mais desprotegidos da sociedade.

 

Vivemos à sombra do espinheiro.

  •  *    *   *

Observação: essa alegoria se encontra no livro de Juízes, capítulo 9.

(21/04/2021)

À SOMBRA DO ESPINHEIRO

 

Há na Bíblia uma alegoria muito interessante que retrata, de forma simbólica, algumas conjunturas históricas.

Antes de recontar a alegoria, vamos conhecer um pouco a situação em que ela foi criada.

Depois que entrou na Terra Prometida, Israel não se preocupou em ter um rei. Na verdade, eles acreditavam que, se as pessoas fossem fiéis a Deus, obedecendo Sua vontade, tudo correria bem. Bastava praticar a Lei de Deus e as pessoas respeitariam umas às outras, haveria solidariedade, os mais fracos – pobres, órfãos, viúvas, estrangeiros – seriam protegidos pelo próprio povo. Assim sendo, por que criar uma estrutura de poder com rei, militares, policiais, burocratas, políticos? Bastava seguir a Lei de Deus.

Entretanto, lá pelas tantas, um homem chamado Abimelec decidiu que devia haver um rei e que o rei seria ele. Conseguiu o apoio de algumas pessoas, contratou uns milicianos e, após, matar seus rivais (seus irmãos), foi proclamado rei pela tribo de Siquém e pela fortaleza de Bet-Melo.

Entretanto, seu irmão mais novo, Joatão, conseguira escapar da matança. Esse jovem corajoso foi até o povo de Siquém, que elegera Abimelec, e contou a seguinte alegoria:

Um dia, as árvores da floresta se reuniram para escolher alguma que reinasse sobre elas. Disseram, então, à oliveira:

- Vem reinar sobre nós.

A oliveira recusou:

- Vou renunciar ao meu azeite que fortalece as pessoas para me balançar sobre vós?

Convidaram em seguida a figueira que também recusou:

- Vou renunciar ao meu doce fruto para me balançar sobre vós?

Apelaram à videira, que rejeitou o convite dizendo:

- Vou renunciar ao meu vinho que alegra os corações para me balançar sobre vós?

Por fim dirigiram-se ao espinheiro, que respondeu:

- Já que quereis que eu vos governe, venham repousar sob a minha sombra.

 

Essa alegoria revela um aspecto importante e paradoxal da natureza humana.

Em tese, o ser humano, além da satisfação de suas necessidades básicas, deseja ser livre. Sem entrar na discussão dos possíveis significados e alcances da palavra “liberdade”, atenho-me ao conceito básico de que ninguém quer que seus direitos de expressar suas ideias, de se reunir com seus semelhantes, de ir e vir etc. sejam tolhidos. Até se entende que, em situações excepcionais, por razões também excepcionais, possa haver uma restrição temporária a alguns desses direitos. Porém a regra é a liberdade.

Contudo, tem-se visto, ao longo da história, ocasiões em que um grande número de pessoas deseja que se implante um sistema autoritário, ou seja, algo que vai restringir suas liberdades. No Brasil mesmo, nestes tempos atuais, vimos grupos de direita saindo às ruas para pedir o retorno da ditadura. Ou seja, pedem que se instale um governo que acabe com suas liberdade fundamentais. Se lhes é dito que a Constituição proíbe qualquer ato que peça o fim da democracia, eles respondem, contraditoriamente, que eles estão exercendo o direito de se manifestar. Quer dizer: estão usando o direito de se manifestar para pedir o fim desse direito.

Enfim, embora a liberdade seja o elemento essencial da natureza humana, parece que há gente que não quer ser livre.

Por outro lado, sempre há pessoas que querem se impor sobre as outras e que são capazes de qualquer coisa para conseguir o poder, como Abimelec, que matou seus irmãos para não ter concorrentes. Esse tipo de pessoa quer o poder pelo poder. Fará de tudo para o conquistar e mantê-lo. Seu discurso é agressivo e até mesmo violento, geralmente utilizando frases de tipo patriótico e moralista. Para fortalecer sua postura agressiva, inventa alguma espécie de inimigo que deve ser eliminado (pode ser um país estrangeiro, um grupo ideológico ou algum segmento da população). Geralmente, essas pessoas têm uma personalidade sociopata: não têm sensibilidade ou empatia para os problemas dos outros, não têm escrúpulos éticos (mentem, se desmentem, usam os outros até quando lhes interessa etc.), não aceitam ser “limitados” por leis, pois se sentem superiores. Além dessas características e outras, uma que é especialmente perigosa é a de acharem que todos estão conspirando contra eles.

 Como sabemos, houve vários personagens com esse perfil psicológico: déspotas orientais, imperadores romanos etc. O século XX viu no poder pessoas assim, sendo Hitler, Stálin, Mussolini os mais conhecidos. Exemplos contemporâneos são Trump e Bolsonaro que têm um comportamento bem característico desse tipo de personalidade: atuam e falam de forma agressiva o tempo todo, estão sempre vendo inimigo em qualquer um que discorde deles, apresentam-se como os únicos líderes capazes de combater os “terríveis inimigos” que são o comunismo, a China (ainda acham que a China é comunista!), os venezuelanos, os homossexuais.

O que é mais incompreensível é que esses governantes contemporâneos foram eleitos, diferentemente dos déspotas e imperadores que se impunham na base da força.

Porém, a alegoria mostra o outro lado da moeda: há pessoas dispostas a apoiar essa forma de liderança. Admiram essa agressividade do líder, achando que é demonstração de coragem. Alguns estudos mostram que existem personalidades que têm necessidade de ser conduzidas, que precisam de um líder, não importa o conteúdo do que ele diz. Essas pessoas ficam impressionadas com a imagem de homem forte que esse líder demonstra. Elas ficam entusiasmadas com a segurança que ele exibe e, mesmo que ele diga alguma coisa absurda, seguem sua orientação sem questionar.

Há outro tipo de pessoas que adere a esse jeito de autoridade por razões mais psicológicas. Ou seja, carregam alguma insatisfação ou frustração e acham que tal personagem representa aquilo que sentem em seu interior, mas que, devido ao controle social, sempre esconderam ou abafaram. Isso pode significar liberar seus instintos agressivos, seu racismo, sua homofobia e lhes dar coragem para expressar rancores ou raivas ocultas.

Outro grupo que costuma apoiar essa liderança são os militares e policiais. Muitas vezes eles se sentem subestimados, pois acham que a sociedade não valoriza suficientemente a bravura com que enfrentam perigos para garantir a segurança de todos. Esses “líderes” em busca de poder sabem disso e buscam se aproximar e agradar a esse grupo de modo especial, pois a sustentação de seu poder se dá essencialmente pela força das armas.

Há também aqueles que carregam dentro de si um impulso de morte (como diria Freud), que é uma espécie de instinto violento, de modo que estão sempre querendo brigar, matar, dar porrada. Esses, numa sociedade organizada, são controlados pelas leis e instituições. Quando encontram alguém que dá sinais de que também possui esse instinto agressivo, eles se identificam com ele e o apoiam incondicionalmente.

É claro que existem também os oportunistas, mas sobre esses não é preciso dizer muito, pois apenas fazem o jogo que lhes interessa.

Então, a alegoria da “FLORESTA QUE QUERIA TER UM REI” mostra um aspecto sombrio da natureza humana: sempre há um espinheiro querendo ser o maior e sempre há árvores que apoiam espinheiros.

 

Voltando à história bíblica, sabemos que, infelizmente, aquela utopia de uma sociedade sem governo não foi possível. As pessoas acabam precisando de uma estrutura social que as controle. Por isso, anos depois, Israel acabou se tornando uma monarquia, para tristeza do profeta Samuel que fez questão de avisar sobre os riscos de ter um rei. Entretanto, em Israel, houve o cuidado para que não se achasse que o rei era um deus e senhor do povo. Por isso, o rei deveria ser consagrado a Deus (= messias) para que fosse um executor da Vontade de Deus diante do povo. Para isso, o rei-messias teria três funções principais:

  1. construir a união do povo para que o povo fosse forte;
  2. garantir que o povo vivesse em liberdade;
  3.  estabelecer a justiça, sobretudo cuidando dos mais necessitados (órfãos, viúvas e estrangeiros, na linguagem bíblica).

No Brasil, hoje, e em vários países, infelizmente, há governantes que fazem exatamente o contrário disso:

a) promovem a desunião e o radicalismo, agredindo e instigando seus seguidores a atacar os que discordam dele;

b) fazem discursos antidemocráticos e levam seus seguidores a atacar as instituições democráticas;

c) querem que o judiciário esteja a serviço deles, apoiam os interesses dos poderosos, acobertando seus crimes ambientais, trabalhistas etc. e não têm a menor preocupação com os mais desprotegidos da sociedade.

 

Vivemos à sombra do espinheiro.

  •  *    *   *

Observação: essa alegoria se encontra no livro de Juízes, capítulo 9.

(21/04/2021)