CRISTÃOS DO ÓDIO


CRISTÃOS DO ÓDIO

 

Caro leitor, você deve estar estranhando esse título. Com razão. São termos incompatíveis!

De fato, considerando o Evangelho de Jesus, não há como imaginar que, em algum momento, se possa falar em “cristãos do ódio”.

Basta lembrar que a mensagem de Jesus está toda centrada no amor, no perdão, na reconciliação, no respeito aos outros. Todos, mesmo não cristãos, conhecem esses ditos de Jesus:

  • “Se teu irmão tem algo contra ti, vai reconciliar-te com ele...”
  • “Ama a teu próximo como a ti mesmo” (aliás essa ideia já estava presente em vários pensadores antes de Jesus, inclusive em Motse, filósofo chinês que viveu quatrocentos anos antes de Jesus).
  • “Amai vossos inimigos, rezai pelos que vos perseguem”.
  • “Se alguém te dá uma bofetada na face direita, oferece-lhe também a esquerda...”
  • “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei.”
  • “Quem chamar seu irmão de inútil, responderá perante o Conselho. Quem o chamar de louco incorrerá na pena do fogo.”

Entretanto, na prática, parece que a história real tem sido diferente.

Vi “cristãos” chamando outros de burros, de safados, de analfabetos, de corruptos (sem provas).

Vi “cristãos” comemorando a morte de pessoas.

Vi “cristãos” xingando pessoas que têm opinião política diferente da deles.

Vi “cristãos” desejando a morte de outros seres humanos.

Vi “cristãos” rogando praga em outras pessoas.

Vi “cristãos” querendo vingança e chamando a isso de justiça.

Não importa se o motivo era político, religioso ou moral. Nenhum desses “motivos” justifica, do ponto de vista cristão, esses comportamentos.

Lembro aqui a encíclica do papa Paulo VI, A civilização do amor. Quão longe dela estamos! Na verdade, estamos criando a civilização do rancor.

Tristemente, ao longo da história, desde que o cristianismo se tornou a religião predominante no Ocidente, esse comportamento parece ser a regra. Em nome das “verdades da fé”, quantas pessoas foram torturadas e queimadas. A Igreja católica fez isso durante a Idade Média até à Idade Moderna. A “Santa” Inquisição fez incontáveis vítimas durante sua vigência. O uso da violência pela Igreja se desenvolve a partir de quando a Igreja se torna religião oficial do Império Romano. Em 341, por exemplo, o imperador Constâncio II introduz a pena de morte para quem fizesse sacrifícios pagãos. Até as divergências teológicas entre cristãos eram marcadas pela violência. Acontecia de defensores de certas posições teológicas se enfrentarem violentamente nas ruas. A Igreja católica, aliada do imperador, a partir de determinado momento, começou a punir e exilar os que divergiam teologicamente de suas posições. As histórias de bruxas queimadas, judeus convertidos à força ou punidos são conhecidas.

As igrejas reformadas (aquelas que romperam com a Igreja católica, a partir de Lutero, com o discurso de querer recuperar o verdadeiro cristianismo) também não foram menos violentas. Muito sangue foi derramado em nome disso, tanto pelos católicos quanto pelos reformados. Também entre eles se queimavam bruxas e hereges e se puniam judeus. Um caso marcante foi o controle de Calvino em Genebra que criou um Estado de Terror. A estrutura de Igreja que ele criou permitia que as pessoas denunciassem umas às outras, por comportamento impróprio ou heresia. Os que discordassem de sua tese da predestinação, por exemplo, eram executados.

A bem da verdade, deve-se lembrar que, neste tempo, era considerado normal condenar hereges à morte: tanto a Igreja católica quanto as igrejas reformadas faziam isso. Vê-se, então, quão longe do Evangelho de Jesus estavam as pessoas de Igreja naquele tempo.

Parece que o instinto humano de atacar e eliminar os diferentes, os que pensam diferente, os que se comportam diferente, os que nasceram diferente, é mais poderoso que espírito do amor.

Até em nossos tempos, vemos esse tipo de atitude.

Nos vários regimes militares da América Latina das décadas de 1960 a 1980, mesmo sabendo que a tortura era praticada contra os dissidentes, várias autoridades eclesiásticas católicas e evangélicas, apoiavam e justificavam essas torturas. Aliás, uma vez ouvi um padre argentino dizer, ao ser questionado a respeito da tortura praticada pela ditadura argentina e do apoio que parte da Igreja lhe dava, o seguinte: “Mas esses presos fizeram por merecer isso”. Muitos daqueles torturadores eram “fervorosos católicos”.

Nosso impulso de vingança, de desforra e de rancor parece nos dominar com tal poder que nem nos deixa perceber como tais atitudes destoam dos ensinamentos de Jesus.

Esses impulsos levaram também homens de Igreja a estimular o racismo, o antissemitismo e coisas do gênero. No fim do século XIX e início do século XX, os jesuítas na Europa instigaram fortemente o antissemitismo. Na Companhia de Jesus, existia uma norma que proibia que fossem admitidos na Companhia pessoas que fossem descendentes de judeus até a quinta geração, ou seja, quando alguém queria entrar na Companhia de Jesus, tinha que provar que até seu pentavô ninguém tinha sangue judeu. A Companhia de Jesus desempenhou um papel muito triste naquele momento histórico em que cresceu o ódio aos judeus e que resultou nos campos de concentração.

Quando houve a primeira “Parada Gay”, que tinha um sentido político de exigir que eles fossem respeitados e não agredidos ou presos por serem homossexuais, grupos de católicos e evangélicos foram assistir para agredir os manifestantes dizendo coisas como: “Desejo que você morra de Aids!”, “Que você sofra muito até morrer!”. Não consigo nem sequer imaginar como esses grupos acham que isso pode agradar a Deus.

Na década de 1970, alguns grupos evangélicos colocavam bombas em clinicas que realizavam aborto. Onde foi que viram Jesus sugerindo isso?

Há alguns anos, quando uma criança morreu num assalto a um carro no Rio de Janeiro, um pastor disse num sermão que era castigo de Deus porque a família era de outra religião.

Quando morreu Hugo Chávez, de uma doença pulmonar muito dolorosa, quando morreram os familiares do ex-presidente Lula, muitos católicos e evangélicos comemoraram em redes sociais e postaram milhares de mensagens desrespeitosas ao ex-presidente e aos falecidos.

O Brasil, hoje, o maior país católico do mundo (nem sei se ainda é...), com o número elevado de evangélicos não pode ser chamado de um país cristão. O que vejo é proliferar o discurso do ódio e do rancor: um presidente que quer ver o povo armado, ministros que querem fechar o Congresso e instâncias da Justiça, políticos que espalham calúnias e falsas notícias contra seus adversários, cristãos que apoiam movimentos de caráter ditatorial, cristãos que ameaçam e agridem aqueles que não pensam como eles.

Nosso país precisa de conversão. Não a conversão de frequentar igreja, não a conversão de participar de cultos ou de eucaristias, não a conversão de ler a Bíblia. Conversão de verdade é mudança de mentalidade. É isso que significa a palavra grega que aparece nos evangelhos: METÁNOIA. Portanto, só pode dizer que se converteu aquele que modifica seu modo de pensar, seu modo de sentir, seu modo de ver as coisas. Essa mudança significa ver as pessoas como Jesus as via: com amor. Assim, cada ser humano era, para Jesus, objeto de amor. Não importava se era uma cananeia pagã e supersticiosa, não importava se era criminoso, não importava se ele se tornaria seu traidor. Jesus fez o que veio ensinar: se queremos mudar o mundo, tem que ser com o exercício do amor. Não com violência, não com agressividade, não com armas, não com a força física.

O diferencial do cristianismo, em sua origem, é que acreditava que o poder do amor que vem de Deus pode transformar as pessoas e o relacionamento entre elas. Entretanto, como vimos, o cristianismo perdeu seu diferencial e se tornou igual às religiões pagãs para as quais só importavam os ritos, as regras e os sacrifícios.

Apesar disso, Deus, em sua infinita paciência e misericórdia, sempre enviou homens e mulheres que foram exemplo de fidelidade ao Evangelho, como Francisco Clara de Assis, para citar dois dos mais famosos. Infelizmente, apesar de todas a devoções e louvores que se fazem a esses santos, seus exemplos não nos moveram a imitá-los como eles imitaram Jesus.

Quão longe estamos de levar a sério o desejo de Jesus: “aprendei de mim que sou manso e humilde de coração”!