POR QUE ESTAMOS ONDE ESTAMOS


POR QUE ESTAMOS ONDE ESTAMOS?

“... os Estados Unidos não são mais um modelo de democracia. Um país cujo presidente ataca a imprensa, ameaça pôr sua rival na cadeia e declara não aceitar o resultado de eleição não pode defender a democracia de maneira crível. Autocratas estabelecidos e autocratas em potencial se sentirão ambos provavelmente encorajados com Trump na Casa Branca” (Levistky, Steven e Ziblatt, Daniel. Como as democracias morrem. RJ: Zahar, 2018)

 

Junho de 2020: o governo Bolsonaro chegando a um ano e meio de seu mandato; a epidemia de coronavírus ainda em crescimento e o governo federal desinteressado desse problema, mais preocupado com os interesses do “mercado”; os fanáticos da seita bolsonária cada vez mais agressivos e violentos, à moda nazista, não apenas verbalmente, mas fisicamente; o presidente apoiando movimentos bolsonários em favor da implantação de uma ditadura; os políticos com medo de discutir o impeachment do presidente, talvez por temer uma intervenção militar; a economia, que já estava em situação péssima antes do coronavírus, piorou muito mais; alguns movimentos contrários à ditadura começam a se manifestar. Enfim, a situação do Brasil está péssima, sobretudo para os mais pobres, como sempre.

Na verdade, chegamos a este ponto por um conjunto de razões que se combinam, mas pretendo aqui me concentrar na causa subjacente que conduziu ao governo este presidente sabidamente despreparado para a função.

Vamos começar recordando o que levou à derrubada de Dilma Rousseff da presidência. O discurso dos meios de comunicação era acabar com a corrupção e, como motivo jurídico, usaram o que se chamava de “pedaladas fiscais”. Assim consumou-se o golpe que tirou a presidenta eleita do poder.

Como se chegou lá?

Os grandes meios de comunicação, controlados, direta ou indiretamente, pelo grande capital nacional e internacional, sempre defenderam os interesses do “mercado”, entendendo-se por mercado o grande capital, sobretudo o financeiro. Portanto, esses meios de comunicação sempre apoiaram os candidatos que se alinhavam com o neoliberalismo, com o discurso do Estado mínimo, cuja pauta central consiste na privatização de todas as empresas ou órgãos estatais que possam dar lucro, principalmente a Petrobrás, mas também o Banco do Brasil e outros.

Normalmente, os melhores representantes desse projeto “neoliberal privatizante” eram os candidatos do PSDB. O processo de privatização já avançara com o Presidente Collor de Melo (1990 a 1992), mas fortaleceu-se nos governos de Fernando Henrique Cardoso (1995 a 2002). A situação era promissora. Provavelmente, o sucessor de Fernando Henrique Cardoso seria o José Serra, nome absolutamente confiável do ponto de vista dos “senhores do mercado” (para simplificar, vou adotar essa expressão daqui em diante). Bastava cuidar para que ele fizesse uma campanha razoável (o que não era fácil, pois ele não tinha nenhum carisma e não tinha nenhuma expressão social) e fazer, como faziam há anos, que o povo tivesse medo do Lula, repetindo as propagandas negativas de sempre (a Bolsa de Valores caía: culpa do Lula; os investidores internacionais tinham medo do Lula; Lula era “comunista” ou coisas assim).

Entretanto, para desespero dos senhores do mercado, quem venceu foi o Lula.

Qualquer um (minimamente honesto e bem informado) sabe que o governo Lula (2003 a 2011) foi perfeitamente enquadrado dentro dos padrões capitalistas, respeitando as regras do jogo capitalista, inclusive, investindo dinheiro público para auxiliar alguns senhores do mercado. Mas ele foi capaz de evitar que a crise econômica internacional afetasse seriamente o Brasil. Uma diferença essencial é que ele investiu mais no enfrentamento da pobreza, criando ou aumentando os recursos de alguns problemas sociais. O que, aliás, não incomoda aos senhores do mercado. Até consideram isso bom, pois ajuda a aliviar a tensão social.

Entretanto, obviamente, não estavam satisfeitos com o governo, pois seu maior interesse não estava sendo atendido: a privatização das empresas públicas. Assim, voltaram a “jogar pesado” para impedir a reeleição de Lula, lançando o nome de Geraldo Alckmin, também do PSDB.

Lula conseguiu se reeleger. Continuou seu governo no mesmo estilo: algo parecido com um governo social-democrata. Manteve os programas sociais. Manteve a postura de não privatizar nada, mas “sem mexer” no controle dos senhores do mercado tinham sobre o conjunto da economia. Ele foi o presidente que concluiu o mandato com a maior aprovação da história. Também foi o presidente brasileiro mais respeitado internacionalmente.

Para sucedê-lo, indicou Dilma Rousseff, ministra da Casa Civil, que, embora tenha sido militante de esquerda durante a ditadura, não tinha muito traquejo político nem carisma ou, ao menos, uma competência básica que a legitimasse para esse cargo.

O PSDB relançou a candidatura de José Serra, que seria o nome ideal para os senhores do mercado. Porém, seu estilo pesado, apesar do forte e explícito apoio da mídia a serviço do mercado tornava difícil sua eleição. Porém, a candidata Dilma Rousseff também era uma “candidata pesada”. A grande força dela era o apoio do Presidente Lula, mas muito raramente se consegue “transferir” votos. Portanto, a expectativa de vitória do PSDB era alta.

Contudo, para desespero dos senhores do mercado, Dilma Rousseff ganhou as eleições. Seriam mais quatro anos sem privatizações. Ela manteve os mesmos parâmetros de governo ao estilo social-democrata, sem, entretanto, possuir a mesma habilidade política e jogo de cintura do ex-presidente. Ao mesmo tempo, aumentavam as dificuldades de governar pela crise internacional que começava a afetar o Brasil e pela pressão cada vez mais pesada dos senhores do mercado, fazendo o possível para manter o governo acuado.

Terminando o primeiro mandato (2014), Dilma Rousseff voltou a se candidatar, enfrentando uma campanha mais difícil ainda.

Por outro lado, o PSDB lançou a candidatura de Aécio Neves, governador de Minas Gerais, um senhor relativamente jovem, simpático. Sua carreira política fora construída a partir do avô, Tancredo Neves, que se tornara um espécie de “herói” ou “santo” ou “mito” para muita gente. Aécio Neves não tinha exatamente uma ideologia, ou algum projeto sério a oferecer ao país, mas seria facilmente manobrado pelos defensores do neoliberalismo. Na verdade, ele era uma fraude – àquela época, eu achava que era uma fraude do ponto de vista político; mais tarde, descobriu-se seu envolvimento em desvio de recursos públicos. De qualquer forma, os senhores do mercado, investiram fortemente nesse candidato. Estavam certos de que conseguiriam a vitória, pois a candidata do PT tinha sérios problemas de comunicação e empatia. Sua grande força continuava sendo o apoio do Presidente Lula. Portanto, a expectativa de vitória do PSDB crescera muito. Na verdade, Aécio Neves chegou a cair para terceiro lugar nas pesquisas num momento da campanha, mas depois se recuperou. A disputa só seria decidida mesmo nas urnas.

Contudo, para decepção dos senhores do mercado, Dilma Rousseff venceu as eleições, embora por uma diferença pequena de votos (diferença de 3.400.000 votos, de um total de pouco mais de 100.000.000 de eleitores). A partir daí, diante da perspectiva de que o sonho das privatizações seria adiado, os senhores do mercado decidiram agir de forma mais agressiva.

Intensificou-se a campanha para tentar desmoralizar o PT. Descobrindo várias irregularidades e crimes de corrupção por petistas e por aliados do PT (os políticos do Centrão, gente do PP, PMDB, PTB etc. cujo interesse era apenas fisiológico ou pessoal) os grandes meios de comunicação começaram divulgar que todos os petistas eram corruptos, que o governo do PT foi o mais corrupto da história e assim por diante. Alguns jornalistas cumpriram essa função de demonizar o PT criando expressões como “petralhas”, por exemplo. Vários comentaristas (?) políticos faziam discursos inflamados contra o governo. Na verdade, criou-se um clima de rancor e confronto agressivo, que até hoje mantém os ânimos exaltados, sobretudo dos sectários de Bolsonaro. Além dessa campanha radicalizada conduzida pelos meios de comunicação tradicionais a serviço ou diretamente ligados aos interesses do mercado, investiu-se de forma incisiva no uso das redes sociais que alcançava um público sem hábitos de leitura e que, em sua maioria, não se interessava por política até aquele momento.

Através desses veículos, começou-se a estimular movimentos de rua, que começaram em 2013 em São Paulo contra o aumento no preço das passagens do transporte público que se expandiu para vária capitais. Depois, esses movimentos foram ganhando mais vulto e passou a adotar um discurso nacionalista e de luta contra a corrupção. Assim, milhares de pessoas em várias cidades, usando camisas amarelas para mostrar seu “patriotismo”, compareciam a essas manifestações protestando “contra a corrupção no governo”. Dessas manifestações participaram, sobretudo, as “viúvas do Aécio” (eleitores que ficaram profundamente decepcionados com a derrota de seu candidato; primeiro choraram – alguns literalmente; depois resolveram se vingar de sua morte; chamo de “viúvas” porque essa derrota representava a morte política de Aécio Neves; de fato, após a descoberta de sua corrupção, sua morte política, como um político significativo, se confirmou). Havia também grupos que queriam o retorno da ditadura, inclusive com cartazes defendendo o retorno do regime militar (um absurdo claro: exercer seu direito de mobilização para pedir o fim do direito de mobilização). É claro que havia, coordenando, estimulando ou participando desses movimentos os oportunistas bem como alguns convictos de que o PT era comunista e faria uma ditadura no Brasil (apesar de que, em seus mais de 12 anos no poder, o PT não houvesse feito nada que indicasse isso). Na verdade, os senhores do mercado estavam conseguindo seu objetivo: demonstrar poder popular para legitimar o golpe de Estado que pretendiam dar. Com as viúvas do Aécio, os fascistas e as “buchas de canhão” de sempre, o clima estava pronto.

Para consumar, dando uma aparência de legalidade, foi aberto um processo acusando a Presidenta Dilma da “pedalada fiscal”, referida acima. Não foi difícil aprovar o impeachment. Assumiu no lugar dela o vice-presidente Michel Temer.

Enfim, os senhores do mercado haviam se livrado do partido que impedia a privatização. Agora, era garantir que o PT não voltasse ao poder. Para isso, continuaram a campanha de desmoralização do PT e de associá-lo ao comunismo ou àquilo que chamam genericamente de “esquerda”, associando a esse nome, além da corrupção, a coisas como libertinagem, drogas etc.

Apesar disso, para eles, havia um problema que se chamava Lula. Era preciso neutralizá-lo.

A forma encontrada foi prendê-lo, após um processo, que é considerado uma farsa jurídica por vários analistas sérios brasileiros e internacionais. Dessa forma, Lula ficou fora da eleição. O juiz que o condenou, Sérgio Moro, tratado como um herói pelos meios de comunicação dos senhores do mercado, abandonou depois a magistratura e se tornou Ministro da Justiça do candidato, Jair Bolsonaro, que venceu as eleições.

A vitória de Jair Bolsonaro foi a vitória dos senhores do mercado que, finalmente, conseguiram colocar alguém que representasse seus interesses. Mas isso não é tão simples.

Como sempre, os senhores do mercado investiram em um candidato do PSDB, Geraldo Alckmin, governador de São Paulo. Entretanto, essa candidatura não decolou nacionalmente. Por outro lado, o candidato Jair Bolsonaro, político antigo, deputado federal há 28 anos, conhecido por suas posições agressivas e modos grosseiros, machistas e homofóbicos, defensor da ditadura e da tortura, cresceu na disputa com o discurso moralista como defensor dos valores da família, como disposto a combater a corrupção (enquadrando todos os políticos adversários no rol dos corruptos) e apresentando-se como o único que nunca fora envolvido em corrupção. Além do apoio dos milicianos que sempre asseguraram sua base eleitoral do Rio de Janeiro, ele conseguiu a adesão de muitos líderes das igrejas evangélicas e de alguns líderes católicos confiando que Bolsonaro seria contra o aborto, contra os discursos de “gênero” etc. Tendo constituído uma base razoavelmente sólida, precisava de apoio de setores empresariais. Para isso, apresentou Paulo Guedes como sendo o seu futuro Ministro da Economia.

Paulo Guedes havia sido aluno da Escola de Chicago, cuja ideologia central era a teoria do choque de capitalismo nas economias, ou seja, reduzir o Estado ao mínimo, privatizando tudo que fosse possível e lucrativo para os senhores do mercado. Dessa forma, Jair Bolsonaro tornou-se mais palatável ao mercado, que o temia, pois, como deputado, Bolsonaro sempre fora contrário às privatizações. No decorrer da campanha, a polarização concentrou-se no candidato do PT, Fernando Haddad, já que Lula estava preso, e em Jair Bolsonaro. Como o candidato “mais civilizado” (Alckmin) não tinha chance, os meios de comunicação a serviço dos senhores do mercado foram se acomodando à necessidade de apoiar Bolsonaro. De qualquer forma, Bolsonaro já havia consolidado uma base de sectários fanáticos que lhe dariam sempre uma sustentação. Ao mesmo tempo, aumentava sua tática de ameaçar as instituições, de não aceitar o resultado das eleições e todas aquelas práticas típicas dos populistas autoritários descritas no livro Como as democracias morrem (de Levitsky, Steven e Ziblatt, Daniel – Ed. Zahar, 2018). Também agregou a seu eleitorado as viúvas do Aécio que prefeririam Geraldo Alckmin, mas aderiram ao discurso de “tudo menos o PT”.

Jair Bolsonaro ganhou as eleições com folga.

Seu ministério foi composto por pessoas completamente despreparadas, mas o que importava era o mercado. E lá estava o Paulo Guedes como Ministro da Economia. Em pouco tempo, percebeu-se que ele não tinha nenhuma visão global e nenhum projeto abrangente para ajudar o Brasil a enfrentar a crise econômica. Sua única proposta era privatizar tudo, atendendo, pois aos interesses do mercado. Um de seus primeiros projetos, que teria a meta de resolver a crise da Previdência Social, consistia precisamente em privatizar a Previdência dos trabalhadores, seguindo o modelo implantado no Chile durante a ditadura de Augusto Pinochet, para o qual ele havia trabalhado ensinando as teorias de Chicago na Universidade do Chile. Enfim, seu projeto resume-se a privatizar a Petrobrás, o Banco do Brasil e tudo mais que interesse ao mercado. Na verdade, não é capaz de entender a totalidade dos problemas em jogo, buscando praticar apenas a teoria econômica de choque de capitalismo em que foi adestrado.

Recentemente, o Ministro da Justiça, Sérgio Moro, pediu demissão do governo. Após ter sido diversas vezes “atropelado” pelo Presidente, que lhe havia prometido plenos poderes, decidiu sair do governo acusando o Presidente de tentar interferir na Polícia Federal. Entretanto, manteve-se calado, omisso e acovardado em várias outras ocasiões em que o Presidente passou por cima dele. Agora, no entanto, que começa a ficar clara a perda de legitimidade social deste governo, exceto para os sectários fanáticos de Bolsonaro, Sérgio Moro decidiu sair do barco. É bem provável que seja o próximo escolhido pelos senhores do mercado para levar adiante seu projeto.

Enquanto isso, o país atravessa uma crise de epidemia de Covid-19, com o governo insistindo não aceitar o procedimento recomendado pela Organização Mundial da Saúde de isolamento social, pois está preocupado apenas em garantir o funcionamento do mercado. O Presidente é cada vez mais ridicularizado e zombado internacionalmente, inclusive correndo o risco de perder parcerias internacionais importantes. A agressividade crescente do Presidente aos meios de comunicação, que são os maiores representantes do mercado, tem feito que esses meios comecem a criticá-lo explicitamente, seus comentaristas econômicos e políticos que, no princípio, apoiavam e defendiam o governo passaram a criticá-lo com veemência cada vez maior.

Enfim, todos esses que achavam que as falas agressivas contra grupos sociais e instituições eram apenas seu “estilo”, mas que poderia ser controlado, começam a ver que o Presidente não é controlável. Na verdade, há indícios fortes de que Jair Bolsonaro seja um sociopata e, como tal, incapaz de um relacionamento respeitoso com os outros, sem escrúpulos morais e sempre desconfiando de que os outros, mesmo seus aliados, estão tramando contra ele.

Em suma, a situação em que o Brasil se encontra hoje é resultado da estratégia dos senhores do mercado para burlar a democracia a fim de garantir seus interesses. Acontece que os discursos inflamados e “indignados” de vários jornalistas construíram um clima de descrédito em toda a classe política e que acabou transbordando também para os meios de comunicação que se oponham ao Presidente Bolsonaro. Assim, para os sectários bolsonários, todos os que divergem são “comunistas”, “corruptos” ou “traidores” (caso de Sérgio Moro, após sair do governo).

Portanto, a tática excessivamente agressiva e generalizante, que ultrapassou os limites do respeito e do bom senso, dos senhores do mercado levada a efeito pelos meios de comunicação e seus servidores levou o Brasil a esta terrível situação em que se substitui o diálogo entre divergentes por ameaças e agressões. Parece que o Brasil está a ponto de entrar em uma guerra civil.

Deus proteja o Brasil.

Post-scriptum: Texto escrito em meados de junho de 2020. Agora, início de julho, o presidente Bolsonaro e seus sectários andam mais recolhidos. Acontece que o Judiciário começou a enfrentar e investigar os grupos pró-ditadura que apoiam o presidente e agridem o STF, bem como os esquemas de fake-news que o ajudou eleger o presidente e foi preso seu amigo miliciano Fabrício Queiroz. Estando o presidente mais “bem-comportado”, os senhores do mercado começam a voltar a apoiá-lo para que o ministro Paulo Guedes efetive seu projeto de privatização, que é o que lhes importa.