O MENINO DE RUA E O MENINO NA RUA
Esta é uma história sem enfeites, sem gramática, sem compaixão e sem decoro.
* * *
Dia um.
Paulo Celestino Crotá. De menor. Um negrinho muito preto. Olhos grandes. Carapinha cortada rente, não raspada. Nome de guerra: Crotá. Talvez onze ou doze anos. Não alto.
Na rua desde os dez, que alguns começam cedo. Se enturmou num bando de menores liderado por um maior – vinte anos. Mas Crotá tinha independência. Era esperto, não obedecia tudo que o líder mandava. E circulava sozinho por lugares a que os outros não iam.
Nunca encontrei com ele na vida real. Só em sonho. Num sonho real.
Crotá em apuros corria pra se esconder em qualquer buraco que desse. Desceu correndo as escadas do túnel sob a linha que tinha mictório público e umas lojinhas também. Correu, escorregou, levantou se meteu num banheiro, circulou pelo outro lado e escapuliu escada acima de novo pra rua, seu lar. Mas perdeu o troco do lanche que tinha surrupiado da dona desatenta. Tinha mesmo que esmolar na frente da lanchonete, não queria se arriscar de novo com tanto polícia rondando por ali.
Na porta da lanchonete, outro menino assediando os fregueses – sempre mentirosos, diziam que não tinham dinheiro.
Ueslei da Silva. De menor. Moreno. Olhos castanho-claros. Cabelo liso, sujo e desgrenhado. Nome de guerra: Ueslei. Onze, doze anos, treze no máximo. Muito magro.
Ueslei não gostou de ver um competidor. Xingou e foi tirar satisfações. Crotá não queria brigar, estava cansado e com preguiça. Só disse: deixa que eu arranjo pra você. Já era conhecido no lugar e sabia a quem pedir. Descolou um salgadinho pra cada um, depois mais umas sobras de sanduíche e coca-cola.
Ueslei e Crotá partiram dali meio amigos.
- Tu mora onde? – Ueslei.
Silêncio: !?
- Moro? Onde? (Silêncio). Na rua, claro. Por quê? Tu não é da rua não?
- Sou não Moro com minha mãe e meus irmãos.
!?
- Tem pai não?
- Padrasto.
!?
- Pior coisa que tem. Ele te bate?
!?
- Não. Não se mete comigo. Nem ele, nem minha mãe, nem ninguém.
Fim da conversa. Só foram andando, dobrando em cada esquina, ziguezagueantes pelas ruas da cidade, sem pressa, sem sentido, como quem vaga a esmo, captando sempre olhar desconfiado e temeroso dos transeuntes com os quais cruzavam. Na verdade, caminhavam alheios à agitação urbana ao seu redor ou ao estranhamento quase agressivo dos outros. Vagueando assim, chegaram à Praça Getúlio Vargas, que era pra onde se dirigiam desde o começo dessa marcha estrambólica.
A estátua do Getúlio no meio do espaço central, que fora um pequeno gramado e agora era só chão batido, fazia uma sombra boa àquela hora de final de tarde. Os dois sentaram. Crotá tirou de dentro de um surrão – que outro nome dar àquela sacola velha? –, envolto num saco plástico, um vidro de cola, o cheiro que torna qualquer visão possível. E, sem ritos nem cuidados, passaram o resto da tarde cheirando até adormecerem anestesiados, corpos jazentes no chão.
Despertaram às dez, sol queimando na pele, confusos e hemiparésicos, permanecendo quietos até recobrarem o senso de localização, posição, identidade.
Ueslei:
- Vou pra casa. Quer ir comigo?
- Não. O quê que eu vou fazer lá?
- Nada. Só pra ir comigo. Te arranjo comida lá.
- Onde tu mora?
- Campo Grande.
- Meio longe. Como é que a gente vai?
- De ônibus. A gente vai pedindo carona, ou vai de graça, a gente se vira.
- É, pode ser.
Mal vestidos, mal cheirosos, não foi fácil conseguir a carona, mas chegaram à casa de Ueslei, onde foram animadamente recebidos pelos seus irmãos pequenos – dois meninos e a caçula. A mãe tinha ido pra uma faxina e o padrasto tinha conseguido um biscate. Das sobras de arroz com feijão, mais o ovo e um pedaço de lingüiça que acharam na geladeira, fizeram um mexido que todos acharam delicioso. Depois ficaram um tempo brincando com as crianças que gostaram muito de Crotá.
De tardinha, Ueslei chamou Crotá pra saírem. Descendo a rua principal entraram numa casa no fim da rua. Dentro: adolescentes, pré-adolescentes, som alto, fumaça, cheiro de maconha. Suas entradas são ignoradas, cada qual fazendo o que estava fazendo. Apresentação ao dono da casa:
Ueslei:
- Esse aqui é o Crotá. Esse aqui é o Paulão.
- Tu não mora aqui, né? Mora onde? – Paulão perguntou.
- Moro na Praça Getúlio.
Paulão ficou olhando parado pensando não entendendo, Ueslei explicou:
- Ele mora na rua, fugiu de casa.
- Ah! Tá... Tá legal, faz de conta que a casa é tua – falou devagar e mostrou um canto pra eles se encostarem, se quisessem, o que fizeram, e ficaram lá, sem pressa, se enturmando.
Conversa trocada, truncada, entre caladas pausas, nervosos tecos compartilhados. Memórias paratáticas de Crotá, nada de original, vida padrão, como saída de fábrica de produção em série: nascera no interior, em casa não tinha nada, o último homem de sua mãe alcoólatra batia nele, na mãe e nos irmãos, medo dia e noite, porrada todo dia, do homem que nem sabia o nome e da mãe, raiva e medo, porrada todo dia, comida não, dinheiro só pra cachaça, mãe trepando na frente dos filhos, raiva e nojo. Só conta sem emoção como num relatório de reunião.
- Tu tá vendo todo esse pessoal aqui? Vida igual. Ninguém foi morar na rua. Vai agüentando, apanhando e agüentando, quando tá mais pesado fica um tempo fora, depois volta...
- Mas eu não... Sempre teve um negócio no meu corpo, lá dentro do sangue, sei lá, que mandava eu ir embora, uma coisa que sempre dizia sai dessa casa, vai embora, tu não é daqui, vai pra outro lugar. Não sei o que era, não era uma voz mas era como se fosse uma voz na barriga, no peito, batendo todo dia dentro da minha cabeça: sai fora dessa casa, vai passear, vai andar. Teve um irmão desses que gosta de converter o povo da rua que disse que isso era o demônio, sei lá. Quando saí de vez? Foi no dia, de noite, que vi o homem da minha mãe – a mãe de porre dormindo babando – botando o pau pra fora e querendo forçar minha irmã chupar. Aí me deu um vermelho nos olhos fui pra cima dele com faca. Ele me tomou a faca e me encheu de porrada. Só no outro dia acordei. Aí meu corpo mandou eu fugir. Fugi. Vim pra cá.
A rua tem coisas boas e coisas ruins. Ele apanhou muito de outros em briga disputando comida ou lugar pra dormir e apanhou à toa também, mas não chorava e não tinha medo de nada. E cheirar cola era bom, não pensava em nada, não pensava, só ia vivendo e fugindo. Mas quando cheirava via as coisas mais bonitas que queria ver. Queria ser caçador. E, se Deus quisesse, um dia ia voltar e matar o homem.
Muito tarde, voltaram pra casa, quase amigos. Dormiram no mesmo quartinho com os irmãos.
Dia dois.
- Levanta, cara, já é tarde.
Cada dia, o mundo começava de novo, como se tivesse sido recém-criado. Cada dia era um dia, como se diz mas não se entende. Pra Crotá, não existia a lógica do passado e do futuro, não tinha donde nem aonde. Cada dia era o existir em si mesmo, plano, pleno de si. Vida não havia como fluxo, só como agora.
No susto de ter sido desperto – não estava acostumado – levantou de súbito em gesto de defesa. Levou um tempo pra se localizar na estranheza do lugar que não era a praça nem o barraco onde morara. Mas, finalmente, se encontrou. Acordar era uma espécie de mergulho de uma parte de si pra salvar a outra parte de um afogamento.
Depois do café e do pão com margarina, saíram os dois rumo à mesma casa da noite anterior. Porta aberta, ambiente sonolento, Paulão agitado.
- Vem cá. Tô com um serviço. Faltaram dois caras. Topam?
De primeiro, não entenderam. Paulão repetiu explicando que ele tinha combinado fazer um serviço – “entende?” – que não podia furar – “entende?” – mas que precisava de quatro pessoas e dois não tinham aparecido – “tá entendendo?” – e se eles queriam encarar. Era moleza. O negócio era um assalto numa garagem ao meio-dia, quando era vazio e ele sabia que naquele dia tinha um money lá.
Os garotos hesitaram, nunca tinham feito esse tipo de coisa.
- Vocês nunca roubaram?
- Só bobeira, quando os segurança ou o pessoal das loja moscava. Eu nunca fiz isso não – explicou Crotá.
- Eu também. Acho que não dá.
- Tão amarelando?
Crotá não gostava que dissessem isso dele, ele nunca tinha medo de nada, nunca amarelava. Os dois toparam.
- Vocês vão chegar, com essa cara de mendigo que vocês têm. Lá dentro tem uma moça que é secretária e vai ter um segurança. Vocês vão pedir comida. Eles não vão dar, é claro. Aí pede água, água todo mundo dá, aí eles vão deixar vocês entrar pra ir beber na bica, tá entendendo? Vou deixar esse trinta-e-oito com Uéslei. Quando o portão abrir, você rende o segurança e eu entro pra pegar a grana que sei onde está. O Bolado vem com o carro pegar a gente. Só isso. Tudo rápido. Moleza.
Não fizeram perguntas, por timidez ou inocência. Era mesmo fácil. Tudo saiu como combinado. Ninguém reagiu, o homem que estava lá nem era segurança e não tinha arma nenhuma. Paulão apareceu com gorro-máscara escondendo o rosto. E fugiram sem problemas de carro com o Bolado – carro roubado.
Compraram umas roupas, comeram em restaurante, compraram maconha da boa e curtiram o resto da tarde e noite.
Quando voltaram pra casa, a mãe de Uéslei estava acordada:
- Que merda você fez, seu filho da puta? Tá todo mundo sabendo que foi você, e o outro deve ser esse pivete aí, que roubou a garagem. Só não apareceu sua cara toda na televisão porque tu é menor e eles põem aquela mancha pra não aparecer, mas quem te conhece sabe que é tu, seu filho da puta. E agora tu vai ser preso. Essa vizinhança de fofoqueiro já tudo de olho em tu e já vieram falar comigo.
O padrasto:
- Aquela empresa, seu babaca, tinha esses aparelhos de segurança que filma tudo, seu babaca. Tu foi filmado. Tu e o pivete e o mascarado. Vão te pegar logo. Racha fora, some, e faz de conta que não conhece a gente.
Os dois meninos tremiam e quase choravam, espantados, confusos, perdidos. Com um safanão o padrasto os pôs fora de casa, sem a intervenção da mãe.
Correram de volta pra casa do Paulão, que já sabia da notícia e não deixou que ficassem ali, e ele mesmo já estava indo pra casa de um primo do outro lado da cidade.
Àquela hora, não tinham como sair do bairro. Trataram de se esconder num terreno baldio e por ali passaram a noite entre sono e pânico.
Dia três.
Quando os primeiros ônibus começam a circular, os dois saem cuidadosos e furtivos. Pegam o primeiro que passa em direção ao centro, o melhor lugar para se esconder, quando não há alternativas melhores. Além do mais, era um lugar que Crotá conhecia bem.
Foram pra frente da Igreja do Carmo em reforma há vários anos e localizada num local pouco freqüentado, ou melhor, freqüentado apenas por mendigos. Era seguro. Mas precisavam circular pra arranjar comida. Toda viatura ou policial os punha em sobressalto.
À noite, Uéslei resolveu voltar pra casa. Crotá entrou por um buraco na parede na Igreja do Carmo e dormiu lá dentro.
Dia quatro.
Crotá decide ir até a Praça Getúlio Vargas pra ver como estão as coisas. Tudo normal. Permanece por ali mesmo, semi-oculto. Aos poucos vai recuperando a tranqüilidade, até conseguir relaxar. Revê alguns meninos que costumam ficar na praça e compartilha da cola que estavam cheirando.
Estafado, anestesiado, drogado, vai afundando, afundando, afundando naquele poço infinito dentro de si mesmo e se afoga definitivamente.
Dia cinco.
Crotá não emerge do mergulho.
Só à tarde alguém percebe a estranheza daquele corpo negro inerte sob a estátua de Getúlio. É noite quando o camburão recolhe o cadáver.
Dia seis.
Uéslei aparece morto com um tiro na nuca.
A mãe diz aos jor foi nalistas que foi a polícia.
A polícia diz que queima de arquivo.
Dia sete.
No IML, dois corpos quase adolescentes aguardam reconhecimento.
Em todos os bairros, alguns fiéis vão às igrejas prestar culto a Deus.
É domingo.
* * *
Como havia dito: essa foi uma história sem graça.