VICIADO EM SELETIVO
Eu sempre fui um usuário convicto do Transcol (para os que não conhecem a sigla, é o sistema de transporte urbano da Grande Vitória, também conhecido por aí como “quentão”).
Quero deixar claro que sempre andei de ônibus por razões muito claras: não gosto de dirigir, acho que tudo em Vitória é muito perto (em relação à cidade de onde vim) e penso que é preciso reduzir o número de veículos particulares na rua para o bem da cidade e da naturreza (enfim, uma razão razoável e altruísta).
Preciso dizer também que o Transcol é ótimo, por razões diferentes das que eles mesmos gostam de divulgar. Ou seja, não é nada seguro, como dizem, pois já vi muita gente levando tombos nos ônibus. Se os profissionais são treinados, deve ser pra forçar passagem no meio do trânsito, pra correr na ponte acima do permitido a fim de testar por quase quatro quilômetros se o sinal sonoro de alerta de velocidade está funcionando ou pra não cumprimentar os passageiros (a fim de evitar intimidades, talvez). As virtudes reais do Transcol são outras. Nada como a emoção de você chegar no terminal pra fazer a baldeação e o veículo que você ia pegar está saindo um minuto antes da hora – isso é adrenalina pura. E mesmo que você sinalize pra ele esperar um pouquinho, ele não vai fazer isso porque não é permitido, a não ser que seja conhecido do motorista ou uma mulata gostosa. Ou então, chegar no terminal em hora de pico e assistir emocionado ao engarrafamento ali dentro mesmo, com vários ônibus tentando sair ao mesmo tempo. Não é preciso lembrar aqueles prazeres mais corriqueiros, comuns em todos os transportes urbanos desse país, como o contato direto e tão íntimo entre os seres humanos num ônibus superlotado, os solavancos e freadas bruscas, etc.
Por essas e outras, custei a abandonar o hábito de andar pelo Transcol. Confesso que a avaliação financeira também pesava nessa inércia da não-mudança.
O transporte seletivo (é esse o nome oficial mesmo, rimando com coletivo, porém “seleto”) é mais caro que os ônibus comuns, mas sua aparência é distinto: são menores, de cor prata, com perfil mais elegante. As diferenças mais importantes é que os seletivos têm ar condicionado e poltronas acolchoadas. Sempre que os via passar, era uma tentação à qual resistia por pão-durismo, mas sonhava: num veículo desses, a gente pode até dar uma relaxada.
Até que um dia, tendo perdido todos os ônibus que me serviam naquele horário, passa um seletivo quase me convidando. Não havia como resistir.
Desde a primeira experiência, foi uma atração irrefreável, que faço questão de compartilhar.
Não vou relatar essa primeira vez, mas tentar descrever os prazeres que tenho sentido ao longo desses meses de viagem cotidiana nos micro-ônibus do transporte seletivo. Temo – como os grandes amantes ou os grandes místicos – não encontrar as palavras adequadas para expressar tão poderosas emoções.
Tendo tomado o ônibus às 8h, deduzi que esse seria horário adequado para estar no ponto a fim de não perdê-lo. Contudo, sabendo da inconstância do trânsito, passei a chegar ao ponto cinco minutos antes daquele horário. O seletivo passava pontualmente às 8h. Alguns dias passou às 8h05m. Outras vezes passou às 8h10m, ou mesmo mais tarde um pouco . Não tive dúvidas: o horário mais cedo era 8h. Assim comecei a chegar um pouquinho antes de 8h, coisa assim do tipo um ou dois minutos antes. Até que um dia, estava eu a uns cinqüenta metros do ponto, naquele minutinho antes das 8h, quando ele passa zunindo perto de mim. Ainda sacudi as mãos tentando chamar a atenção, mas o motorista, certamente concentrado na direção, não percebeu meu desesperado aceno. Nesse dia tive que me contentar com o velho Transcol, que continua aquela maravilha que comentei acima.
Aprendi a lição, tomei cuidado pra chegar mais cedo ao ponto. E ele voltou a passar sempre entre 8h e 8h10 m, exceto nos dias em que – reconheço que por minha máxima culpa – eu chegava dois minutos antes, ao invés de cinco.
Muita adrenalina mesmo: sair correndo pra não perder o ônibus que, provavelmente, só vai chegar quinze minutos depois que você já estiver no ponto, mas que, se você não estiver, passará desembestado nas suas barbas.
Aliás, essa é uma das características mais interessantes dos seletivos. Eles sempre passam voando pelos pontos, mesmo que saibam que ali costuma haver passageiros. Já me aconteceu mesmo de perder um ônibus por causa da minha lerdeza. Eu o vi parado no ponto anterior e, como estava próximo a uma banca de jornal a cinco passos do abrigo do ponto (para ficar na sombra, comodismo meu, pois os “abrigos” daqui não protegem nem da chuva nem do sol), fui caminhando até a posição precisa do ponto; quando me virei pra conferir a distância e estender o braço, ele passou como um vento ao meu lado. Agora, quando vejo o ônibus no ponto anterior, vou andando de costas, o mais rápido possível, a fim de não precisar ficar com raiva de mim mesmo por tamanha moleza. Haja adrenalina!
Houve ocasião em que cheguei mais cedo ainda no ponto (quase dez minutos antes de 8h). Deu oito horas, oito e dez, oito e quinze, oito e vinte, e nada do ônibus. Desisti e fui trabalhar de Transcol.
No dia seguinte, perguntei o que acontecera e o motorista, numa generosa concessão, explicou que o ar-condicionado estava quebrado e que assim ele não podia sair e a empresa não colocava outro no lugar. Lembrei-me imediatamente do livro “O homem que foi Quinta-feira” em que um anarquista defendia que o mundo seria mais interessante se os metrôs (isso era em Londres) não tivessem horário e não funcionassem sem avisar aos passageiros. Fiquei sinceramente emocionado diante de tão razoável explicação do motorista, sentindo-me no paraíso do anarquismo. Mais ainda: senti-me tão agradecido com mais essa possibilidade de emoção (já pensou? Ir para o ponto de ônibus, sabendo que ele pode não passar!), que quase abracei o motorista.
Momento inesquecível é a entrada no coletivo. Você pode cumprimentar o motorista com o sorriso mais simpático do mundo, que ele é inabalável, um autêntico exemplo de impavidez, cumpre rigorosamente a lei que proíbe conversa com os condutores, não dando qualquer brecha pra que você diga alguma coisa. Ele ainda olha pra você (o que no Transcol não acontece, salvo exceções) ou pro seu lado, mas apenas porque precisa pegar o dinheiro da passagem. E, antes de dar o troco, arranca velozmente rumo ao cruzamento que fica a cinqüenta metros, enquanto com a mão esquerda pega o dinheiro pra dar o troco, conferindo as moedas de soslaio. Muito habilidosos mesmo: uns artistas. Fiquei maravilhado tanto com a impetuosidade de suas partidas quanto com a perícia em dirigir e dar o troco ao mesmo tempo, com o passageiro em pé, assustado, ao lado dele.
Numa dessas arrancadas arrojadas, cheguei ao auge da comoção. Assim que pegou o dinheiro, o motorista deu o arranque a toda, eu tentando me firmar no ferro que fica na porta com uma das mãos e segurando a pasta com a outra. Passando pelo cruzamento direto, outro carro que, por sinal, ousava estar na via principal, atravessou na frente dele, o que o obrigou a dar uma freada brusca. Meu corpo balançou pra frente, rumo ao vidro frontal do ônibus, e retornou no eixo repuxado pelo braço que se manteve fixo no ferro que o sustentava. O ágil condutor apenas rosnou pro outro carro, que já se fora, e reacelerou com disposição. Não caí, mas, medroso como sou, trato de ficar na parte interna do ônibus enquanto aguardo resignado o troco e o motorista zarpa rápido rumo ao cruzamento.
O sonho de viajar no seletivo é o conforto que as cadeiras macias e azuis oferecem. Ao sentar, lembram-nos um pouco poltronas de avião, ou seja, macias e estreitas. Imediatamente, tendemos a relaxar pra aproveitar aquela mordomia que os diferencia dos quentões.
O veículo já está em movimento, como se sabe. Chegar até a poltrona pode ser um pouco complicado por conta da velocidade do veículo. O que ajuda é que o corredor central também é estreito e, de alguma forma, você se escora nas poltronas. Quando senta, você se prepara pra dar uma relaxada e, quem sabe, uma concentração-zen, que é quase uma soneca. Mas lá vai o seletivo voando sobre os quebra-molas, inclinando trinta graus a cada curva, produzindo turbulências como um avião em meio a nuvens. Então, em vez de cochilar, você experimenta o radical esporte de não ser lançado da poltrona contra o banco da frente ou do lado.
Essa sensação é muito mais radical quando se senta na poltrona que fica nos fundos do ônibus: a cada quebra-molas, é projetado para o alto, a cada freada, escorrega para a frente. Indescritível! Imagino os efeitos benéficos para aqueles que pegam o ônibus após o almoço.
A última peripécia é descer no ponto de desembarque. Nas primeiras vezes, eu acionava a campainha e, para adiantar, caminhava em direção à porta. Entretanto, a experiência, mãe da prudência, ensinou ser mais seguro esperar que o veículo pare completamente, pois já sei que ele prosseguirá célere e afoito, sem reduzir a velocidade, até travar subitamente; e eu, lerdo e inseguro, provavelmente cairia, não fosse o corredor estreito entre os estreitos bancos do seletivo.
Masoquista assumido, agradeço ao valoroso condutor dessa diligência ter me conduzido são e salvo por tão perigosas e bárbaras trilhas, o qual, evidentemente, nunca responde, fiel a sua ética profissional do silêncio.
Não posso negar: estou viciado em seletivo, um prazer perigoso, mas imperdível. Minha maior frustração é não conseguir voltar para casa no mesmo ônibus, pois ele já passa cheio no horário da volta. Conformo-me com o Transcol, que, embora, nem tão radical (no sentido em que usa hoje para certos esportes), não deixa de proporcionar seus prazeres.
Aliás, precisei rever meu conceito de “seletivo” aplicado a esse meio de transporte. Antes, eu tinha até certa antipatia por essa palavra, devido a sua conotação elitista: um transporte para as camadas “seletas” da sociedade, ou seja, aqueles que podem pagar mais (e muita gente se considera “seleta”, apesar da Revolução Francesa). Hoje, entendo perfeitamente o seu sentido. A “seleção” aí é no sentido de Darwin: seleção natural, só os mais capazes e resistentes sobrevivem.
Se me pedirem um conselho, devo dizer, como na antiga propaganda: recomendo. Mas cuidado pra não ficar viciado como eu, pois todo vício é pernicioso.