QUESTÃO DE LIDERANÇA
A igreja já estava quase cheia, faltando pouco pra começar a missa. O padre mantinha-se a postos, na porta principal, a ponto de se paramentar, pois naquela comunidade havia o hábito de iniciar a celebração com uma solene procissão de entrada, puxada pelo crucifixo, seguido dos leitores e acólitos e fechada pelo sacerdote.
Por uma das entradas laterais dois jovens senhores embriagados entram animadamente. Espalhados e extrovertidos, ligeira mas visivelmente cambaleantes, o tom da voz algo acima do timbre costumeiro com que se fala nas igrejas – mais aquela etílica felicidade dos inocentes – os inesperados fiéis ajeitam-se em um banco localizado bem no meio do templo, ao lado de uma senhora que distraidamente rezava o terço. Não é necessário esclarecer tratar-se do espaço mais estratégico para alguém que pretendesse perturbar a cerimônia.
Apesar de todos os presentes haverem percebido – por impossível de não perceber – a triunfal entrada dos animados católicos, ninguém deu sinal de qualquer iniciativa para acalmá-los ou controlá-los. Desconsoladamente, o padre pressentiu que, caso os dois continuassem ali, teria sérios problemas para conduzir com tranqüilidade a celebração. Resignado, assumiu que lhe cabia solucionar o problema antes que ele acontecesse. Hesitou se devia ir com ou sem a túnica. Decidiu, por fim, vesti-la, pois, talvez, lhe desse mais autoridade – pelo menos, indicava que era o sacerdote.
Dirigiu-se até onde os dois estavam - um ajoelhado, outro sentado – e cumprimentou-os cuidadosamente.
- Bom dia, meus amigos, é um prazer tê-los aqui. Vocês não são dessa paróquia, são?
- Bença, padre – e o bêbado mais bêbado beijou a mão do padre.
- Deus te abençoe. É a primeira vez que vocês vêm aqui? Nunca vi vocês antes.
- A gente mora na rua João Pedro, mas não costuma vim na igreja não. Mas hoje queremos rezar um pouco.
- Vocês estão chegando de alguma festa? Pelo visto, estão bastante animados.
- Mais ou menos – disse o bêbado menos bêbado. A gente tava por aí tomando umas e outras.
A aca que exalavam denunciavam não só a quantidade de cachaça e cerveja que deviam ter ingerido, mas o tempo em que deviam estar vagueando e enchendo a cara sem tomar banho. O padre chegou a ameaçar um engulho quando um deles achegou-se para falar com mais intimidade, e ainda não sabia como fazer pra se livrar dos dois. Até que lhe veio a idéia de usar daquelas psicologias de bolso que, às vezes, funciona melhor que a oficial. Chamou mais pra perto de si o bêbado menos bêbado, colocou a mão em seu ombro, dizendo:
- Meu amigo, como é seu nome mesmo?
- É Antônio, padre.
- Escuta só. Eu acho que seu amigo bebeu um pouco demais e não tá nada bom. Vi que você tem, assim, alguma liderança sobre ele, que ele te obedece. Não seria bom você pegar o seu amigo e levar pra casa pra ele melhorar?
- Mas queremos assistir a missa.
- Pois é, você leva ele pra casa e depois volta que vai ter outra missa logo mais. Mas você tem que ir segurando nele porque ele está meio tonto. Eu acho que ele nem vai conseguir assistir a missa e vai acabar atrapalhando você também. Então você leva seu amigo e depois volta, mas pode deixar que eu rezo por vocês dois e fica valendo como se vocês tivessem assistindo a missa.
Antônio pensou um pouco e concordou. Chamou o companheiro:
- Vambora, Zeca, que o padre vai rezar pra gente.
- Eu não. Eu quero assistir a missa toda. Por que que eu não posso assistir a missa, não é tia? – perguntou à senhora que, aparentemente alheia ao entorno, prosseguia seu terço. O padre com a ajuda do bêbado menos bêbado levantou o bêbado mais bêbado, segurando e puxando pelo braço, e o foi conduzindo pela nave central até a porta, enquanto o bêbado menos bêbado dizia:
- Vão pra casa sim. Eu que tô dizendo. Vão sair da igreja. Essa igreja também não tá com nada. Só tem gente velha aqui.
Da porta, enquanto se paramentava, o padre observava o bêbado menos bêbado escorando o bêbado mais bêbado: trôpegos e falantes ziguezagueavam rumo ao outro lado da praça como dois sinceros amigos do peito.