O último pecado


 

O ÚLTIMO PECADO


As estórias que minha avó contava tinham sempre um sentido pedagógico, embora não me conste que essa palavra fosse empregada naquela época. É claro que muitas vezes não captávamos satisfatoriamente o sentido do que estava sendo narrado, o que não impediria – a mim, pelo menos – de conservar na memória alguns daqueles relatos. A despeito de todo crédito que minha avó possuía, algumas vezes, talvez devido à nossa incompreensão, hesitávamos sobre a veracidade de alguma estória. Entretanto, ao final, prevalecia a força do hábito ou dos seus tão confiáveis cabelos brancos.

O relato que passo a transmitir encontra-se nesse caso. Julgue o leitor sobre seu aspecto educativo e sua veracidade, limitando-me eu, simples veículo, a manter-me o mais fiel possível às informações que a memória guardou, se ela não me trair.

Havia naquela região que antigamente se chamava de área litigiosa, precisamente, por ser uma região em disputa pelos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, um cangaceiro muito temido. O homem já tinha uma porção de mortes em seu currículo, embora, a bem da verdade, alguns desses mortos tivessem merecido o seu destino. Evidentemente, como homem que vive fora da lei, ele era perseguido pelas polícias mineira, capixaba e baiana. Mas também por muitos de seus inimigos. Assim, sua vida estava sempre em perigo, não havendo sossego, mal podendo dormir ou descansar. Mas ele tinha também seus amigos, é claro. Pois mesmo os homens piores têm amigos. Entretanto, de tantas coisas que vira em sua vida de ruindade aprendera que não se deve fiar em ninguém, pois até Jesus fora traído por um de seus maiores amigos. Então, sua vida era fugir e se esconder e não confiar nem em quem lhe dava couto. Passou os anos nessa vida, sobrevivendo a muitos outros valentões contemporâneos, pois o destino dos valentões sempre foi morrer cedo. Se era sorte ou proteção do diabo ou corpo fechado, não se sabia – apenas se especulava, que dessas especulações o povo gosta.

Um dia, sobrevivente de seus próprios pecados, mais do que de inimigos ou traições, entra numa igreja, e fica lá no fundo ouvindo a missa até o final. Na hora do último dominus-vobiscum, um pouquinho antes do ite-missa-est, ele se esconde atrás de um biombo próximo à pia batismal.

Quando todos se retiram, inclusive o padre que se dirigira à casa paroquial, após trancar a igreja, o jagunço se ajoelha na frente de uma pequena imagem Nossa Senhora das Dores e fica lá rezando durante horas e pede que ela que tem um coração tão bom que foi ferido por sete espadas que tenha pena dele e peça a Jesus que perdoou o ladrão na cruz que perdoasse todos os pecados dele para que ele fosse pro céu e que ele até prometia nunca mais matar ninguém e se tornar um homem de paz. Infelizmente, como não era homem de freqüentar igreja, ele não conhecia o ato de contrição, nem o credo direito, só mal-mal a ave-maria e o padre-nosso. Mas ele insistia que Nossa Senhora desse pra ele um sinal de que Jesus tinha perdoado os pecados dele e ele lembrava de todos os homens que ele tinha matado e pedia perdão por todos eles, embora houvesse alguns que ele tinha dúvidas se era o caso de pedir perdão, mas mesmo assim ele pedia por via das dúvidas e prometia de novo que não ia mais, nunca mais, pegar em arma e que até ia deixar a arma ali ao pé da Virgem.

O cangaceiro implorava com tanto fervor que até lágrimas algumas quase rolaram de seus olhos. Homem acostumado à fome, sede, calor, frio, não arredava o pé de conseguir o perdão de Nossa Senhora e de Nosso Senhor. E que tristeza que estava o altarzinho de Nossa Senhora, descuidado, as flores tão murchinhas, os lírios já tão amarelinhos e as rosas já despetaladas, talvez a água das jarras já estivesse até podre. Parece que o padre e as beatas acabaram esquecendo do nicho da santa aqui nesse cantinho da igreja. Nunca vira uma Nossa Senhora tão abandonada, tão pobrezinha, tão tristezinha, o que aumentava mais sua dó e seu arrependimento.

Assim ajoelhado, o dia todo, diante da imagem tão doída, esperava o sinal que o dia já adiantado mostrava que ele não ia receber.

No fim da tarde, crepusculando, ouve o rangido da porta da igreja se abrindo e vê o padre alvoroçado entrando junto com um grupo de pessoas, só tendo tempo de se amoitar atrás de uns bancos, de onde fica observando a movimentação. Rápida varrida no corredor central, colocação de quatro castiçais grandes com velas compridas, uma mesa – é o que arrumam. Mal terminam entra uma família com o ataúde e o assenta sobre a mesa.

Naquela tarde, na cidade falecera uma jovem acometida há uma semana por um problema de coração que os médicos do lugar não conseguiram curar. Era moça respeitada e venerada por sua honestidade, bondade e beleza. Noiva, estava com casamento marcado para a semana seguinte. Mas o destino...

Quieto o jagunço se conservou durante o tempo dos preparativos do velório. Depois todos saíram para cada qual avisar a vizinhos, parentes, amigos a triste notícia. Devagar, então, curioso, foi ver quem havia falecido. E viu a bela noiva. E teve pena, talvez pela primeira vez na vida, da morte de moça tão nova.

Percebe, de novo, ruídos abafados de alguém entrando na igreja e cuida de se ocultar outra vez. Vê o vulto de um rapaz se aproximando do esquife, parando ao lado, olhando, acariciando a morta e – desgraça! – o rapaz vai violar o cadáver.

No átimo do não-pensamento, o velho cangaceiro puxa do revólver e mata súbito o violador.

Depois de conferir que o homem – o noivo, na verdade – estava morto, cai em si da força do seu instinto matador e chora desesperadamente o fato de não ter perdão, que ia morrer pecador assassino e que não iria para o céu. Em desalento, se lança na frente de Nossa Senhora das Dores, berrando “por que não me perdoou? por que não me perdoou? por que não me perdoou?”

Foi aí que viu as rosas viçosas e os lírios brilhando de tão brancos no altar de Nossa Senhora das Dores, que quase parecia sorrir para ele.

Às vezes, um último pecado pode ser a salvação de um homem – perorou minha avó.