O CIÚME E A VÍTIMA

 

Não seja ciumento também, nem briguento ou violento,

pois o homicídio nasce de todas essas coisas.

(Didaquê – Instrução dos Doze Apóstolos)

 

 

 

1      Do ciúme e da inveja

 

A estrutura molecular do ciúme é a mesma da inveja, mas de forma invertida, como acontece com os vírus que causam a catapora e a herpes-zoster. O ciúme seria, pois, uma inveja inversa. De forma simples, para começar, poderíamos dizer que o processo do ciúme é o de que o ciumento é um indivíduo que teme que o outro venha a ter o que é dele. Ora esse temor é, de fato, aquilo que se chama de inveja na definição direta do dicionário, “desgosto ou pesar pelo bem ou pela felicidade de outrem”, pois o ciúme consiste precisamente nesse sofrimento com o fato de que outro usufrua do bem que lhe pertence. Muitos psicólogos entendem que a diferença entre o ciúme e a inveja consiste no fato de que naquele há um sentimento de perda. Eu, contudo, tomo a liberdade de discordar parcialmente dessa distinção, pois na inveja também há uma espécie de sentimento de perda na medida em que o invejoso imagina que aquilo que é do outro deveria ser dele, que ele é que teria o direito de possuir aquela coisa ou pessoa que o outro possui ou, se não a coisa concreta, o estado de alma que ela produz.

Evidentemente, o ciúme, como a inveja, pode ter como seu alvo coisas, situações ou pessoas. E, do mesmo modo, possui três ângulos: o agente, o objeto e o pivô.

Sendo o agente o ciumento ou o invejoso, o objeto será a coisa, situação ou pessoa que está em “disputa” e pivô a pessoa (real ou imaginária) que motivou aquela emoção.

É interessante observar que, no discurso informal cotidiano, essa relações se expressam de forma diversa. Assim quando se diz que “Maria tem inveja de Joana”, Joana é no caso o pivô daquela emoção, pois, de fato, o objeto da inveja de Maria é algo que Joana possui – um carro, por exemplo. Por outro lado, diz-se que “Maria tem ciúme do carro”, sendo o carro (que lhe pertence) o objeto do ciúme. Vê-se, pois, que o complemento nominal de inveja será geralmente o pivô, enquanto o do ciúme será o objeto. Isso não impede que, em certos contextos, os complementos nominais se invertam, como quando ocorre a situação em que se fala que “Maria tem ciúme de Joana com o marido”, sendo Joana o pivô e o marido o objeto. E – só pra complicar essa digressão – não é essencial que o marido seja de Joana ou de Maria, pois amantes também sentem ciúmes das esposas. (E aqui se discutiria o “de quem era o marido?” e entraríamos num debate moral ou legal interminável, mas, para nosso caso, o que importa é que o ciumento só se caracteriza como tal por considerar-se dono do objeto de ciúme e, esposa ou amante, Maria se considera dona do marido anônimo e, propositalmente, indefinido). Digredindo ainda mais, seria possível ver Joana como objeto do ciúme de Maria, entendimento muito compatível com esses tempos de orgulho gay, mas, nesse caso, não seria no sentido que quisemos salientar. Fique, pois, registrado que apesar da regência nominal que abordamos acima, elas podem se dar de forma diversa conforme o contexto: a inveja reger o objeto e o ciúme reger o pivô.

Não resisto e peço a licença para apresentar mais alguns comentários sobre esse parentesco do ciúme com a inveja.

A inveja possui uma dimensão que a torna mais odiosa do que o ciúme. De fato, ela pode se configurar sob forma absoluta, ou seja, ser apenas inveja em si mesma, sem relação com qualquer razão ou motivo. Assim, “Maria sente inveja de Joana” - e só. Isso quer dizer que o segundo termo do triângulo (no caso, o objeto) não existe. Esse é um caso patológico extremo e típico, pois não há uma disputa quanto a determinado objeto, mas apenas a emoção da inveja concentrada numa pessoa. O invejoso se incomoda com qualquer coisa que lhe pareça trazer alegria, prazer, riqueza ao outro. Assim, o que for bom para o invejado, atiçará o rancor do invejoso. Assim, diferentemente do ciúme, além da inveja “motivada”, existe a “imotivada” (imotivada não no sentido psicológico, mas objetivo). Aqui haverá somente a relação agente-pivô.

Além disso, a inveja tem uma conotação maliciosa (e não estou lidando, embora não se possa ignorar, com a questão ética). O invejoso tenderá (ou, ao menos, será tentado e, quase sempre, cederá) a prejudicar a pessoa invejada, independente de que seu sentimento seja ou não motivado. No mínimo, dirá coisas que possam denegrir a imagem do outro. Assim, ele poderá simplesmente insinuar: “como é que ela conseguiu aquele cargo, terá sido por competência mesmo?”; “os professores protegem muito o fulano, por isso que ele tira essas notas, e também ele não precisa trabalhar”; “sabe com quem viram a fulana?”. Já percebeu o leitor que essas não são frases fictícias. Como se sabe, um invejoso mais empedernido pode ir muito além de insinuações para “queimar” sua vítima, chegando a prejudicá-la de fato.

É por essas razões que a inveja está classificada em segundo lugar, em termos de gravidade, entre os sete pecados capitais na tradição católica. É pecado capital (caput = cabeça) por ser um estado mental, implicando uma atitude que se reproduz nas ações do indivíduo, não apenas um ato específico. Como se sabe, a ordem dos pecados capitais foi estabelecida em razão da medida em que essas atitudes poderiam prejudicar outras pessoas. Desse modo, o maior pecado capital é a vaidade (= orgulho, soberba – não confundir com a vaidade estética), pois é o mais pernicioso para o relacionamento amoroso que se exige entre os seres humanos. A inveja foi colocada logo após a vaidade. Portanto, a tradição católica trata a inveja como uma atitude mental pecaminosa de alta gravidade, pois resulta de uma alta dose de egoísmo.

O ciúme não é considerado pecado em nenhum lugar, que me conste, embora receba o alerta da Didaquê, que transcrevemos na epígrafe. Aliás, se se interpretarem os textos bíblicos literalmente, o próprio Deus é chamado de ciumento e, sendo assim, o ciúme não seria um defeito, posto que Deus não os pode ter. Pois é ... Não vamos discutir essa exegese aqui, pois as metáforas ousadas e provocativas dos profetas poetas bíblicos são simultaneamente simples e complexas demais para nos determos nelas agora. Registre-se apenas que o “ciúme de Deus” é a palavra contundente dos escritores bíblicos para assegurar a fidelidade monoteísta de um povo tão reiteradamente infiel. E esse “ciúme divino” não impediu a vida alegórica de Oseias revelando um Deus que, mais que ciumento, é paixão e compaixão pela sua esposa prostituta e adúltera.

O ciúme também deve ser entendido como algo capital, a saber, uma atitude mental e que não se define por atos isolados, mas por uma postura geral da pessoa.

Por seu turno, o ciúme não é possível em forma absoluta, ou seja, não há um ciúme em si mesmo, pois ele supõe necessariamente uma disputa em torno de um objeto. Assim, o ciumento pode ter ciúme de seu cachorro em relação a todas as outras pessoas ou em relação a determinada pessoa. Assim, em qualquer situação, haverá a tripolaridade referida acima (agente, objeto, pivô).

Embora não seja de índole maliciosa em si, o ciúme também pode instigar o ciumento a praticar atos maldosos e, curiosamente, não apenas contra o pivô, mas também ou talvez principalmente contra o objeto. Exemplos? A namorada com ciúme do namorado pode tentar prejudicar tanto o namorado quanto sua pretensa rival. Nesse caso, pode-se alegar que o namorado terá “culpa” também. Exemplifiquemos, então, com um ser inanimado: um rapaz tem ciúme de sua jaqueta e, para que seu irmão não a pegue mais ou porque “ela deixou de ser só sua”, ele a destrói. Como se vê, o ciúme pode ser tão maldoso e prejudicial aos outros quanto a inveja. Aliás, não é incomum que o ciumento diga ao seu objeto de ciúme: “se você me trair, eu te mato”. Registre-se, ainda, que o índice de homicídios por ciúme não é desprezível em nossa sociedade. E não conheço caso de alguém que tenha matado outro por simples inveja. Talvez Caim, segundo a tradição? Ou teria Caim matado Abel por ciúme?

Como nossa cultura tem percebido o ciúme como uma expressão de amor (coisa que discutiremos adiante), há uma diferença importante na assunção explícita desses sentimentos: ninguém confessa que sente inveja (a não ser em formas leves e corteses: “tenho a maior inveja de sua inteligência”), enquanto o ciumento pode confessar com mais desinibição – e até certa vaidade – sua condição. De igual modo, o comportamento do invejoso será quase sempre dissimulado, podendo mesmo ser ou agir como amigo do pivô de sua inveja – e sabe-se que isso ocorre com razoável freqüência, sobretudo quando a inveja possui um objeto preciso, como, por exemplo, um colega que inveja o êxito escolar ou profissional do outro, apesar de amigos (e, apesar disso, não resiste a cometer atos ou falas que depreciem o amigo). Por seu turno, raramente o ciumento será dissimulado, pois não resiste ao impulso que o move para a disputa do objeto e que pode afetar tanto o próprio objeto quanto o pivô. Assim, ocorre uma coisa curiosa que é o fato de que o invejoso (amigo ou não do pivô) costuma ser mais “carinhoso, atencioso, gentil” com seu rival do que o ciumento, que, não raro, torna-se agressivo, controlador e até grosseiro tanto com o objeto quanto com o pivô.

Porém o mais importante é que, apesar das muitas diferenças ou semelhanças acidentais que se possam encontrar entre essas duas posturas capitais e suas modalidades intercambiáveis, é que sua substância é a mesma: a atitude egocêntrica. Efetivamente, é a supremacia do Ego do invejoso ou do ciumento que está em jogo. Não importa se esses comportamentos são causados por egolatria, complexo de superioridade ou inferioridade, por baixa auto-estima, ou qualquer outra psicose ou neurose. Seja qual for a etiologia, o que está realmente em jogo para essas personalidades é a primazia da satisfação do Ego, que só se concretiza pelo prazer de inferiorizar ou de possuir o outro com exclusividade.

Dessa forma, se adotássemos o critério medieval, não estaríamos muito equivocados ao classificar o ciúme como um pecado capital.

Pelo que se viu, as diferenças entre a inveja e o ciúme revelam-se como distinções apenas formais, ou pequenas variações genéticas, como a varicella zoster que causa tanto a catapora quanto a herpes zoster ao ser reativada.

 

 

2      Algumas teorias propositalmente escolhidas

 

Pegando pesado.

Vamos começar pelo terror de pais e psicólogos na primeira metade do século XX, expulso pelos nazistas da Alemanha, expulso do Partido Comunista, apontado como louco por muitos psicanalistas e finalmente preso, ao fim da vida, nos Estados Unidos: Wilhelm Reich (1897-1957).

Esse defensor do orgasmo como solução para todos os problemas humanos (talvez, eu esteja exagerando um pouco), diz que as “reações da peste emocional são comuns em tragédias de ciúmes” (p. 462)[1]. Esse comentário é escrito logo após Reich resumir as atitudes previsíveis de três tipos de personalidade frente ao problema da infidelidade. A primeira, que designa como caráter genital reagiria com maturidade, buscando soluções racionais: trataria francamente do problema, optando pela separação ou pelo perdão, se se confirmasse a infidelidade. A segunda, de caráter neurótico, reagiria de forma tímida, resignada e masoquista. A terceira, acometida pela peste emocional, tentaria “prender o parceiro em casa, cansá-lo com ataques histéricos, dominá-lo com escândalos ou até vigiá-lo usando um detetive” (p 462). É a essas reações que ele refere como ciúme, concluindo que “o motivo não é o amor pelo parceiro, mas a sede de poder e de posse” (p. 462). Na verdade, constata-se que o ciumento é, via de regra, incapaz de romper seu liame com o outro, mesmo restando claro que manutenção do vínculo implique em sofrimento para os dois.

Na terminologia peculiar de Reich, peste emocional é uma espécie de epidemia (pois afeta grande número de pessoas, se não a maioria) em que o doente é alguém que não sabe lidar naturalmente com suas energias vitais, sobretudo a energia sexual, e passa a ter reações desequilibradas com os outros. Em suas próprias palavras:

 

Podemos definir a peste emocional como um comportamento humano que, com base numa estrutura de caráter biopática, age de maneira organizada ou típica em relações interpessoais, isto é, sociais, e em instituições correspondentes (p. 450).

 

O ciúme seria, então, uma das formas de manifestação dessa peste em que a pessoa se relaciona com o outro, que ela diz amar, de forma possessiva e agressiva, sendo incapaz de uma relação confiante e tranqüila, pois a energia biológica (orgone, segundo sua nomenclatura) que é a fonte de todo comportamento humano é deturpada ao precisar “romper a couraça muscular e de caráter, e, nesse processo, os melhores motivos tornam-se ações anti-sociais e irracionais” (p. 459).

Articulando as diversas características que Reich atribui à peste emocional, pode-se dizer que o ciúme está vinculado à visão moralista não-racional inerente à peste emocional e independe do fato de que outro tenha ou não “traído” aquele que é ciumento e, na ocorrência ou suposição da traição, esta serve como álibi com o qual o ciumento justifica perante si mesmo e os outros seu comportamento.

Freud escreveu um artigo intitulado Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e no homossexualismo,[2] que apresenta algumas coisas que vale a pena resumir.

Parte do princípio de que o ciúme é um estado emocional considerado normal, “como o luto”. Vai mais longe ainda: quem “parece não possuí-lo” pode ter passado por severa repressão, donde o papel do ciúme em sua vida mental inconsciente é muito maior do que ele exprime ou do que naqueles que são ciumentos. Portanto, a ausência de ciúmes é que não seria normal.

Classifica ele o ciúme em três graus: competitivo (normal); projetado; delirante.

O ciúme normal, cuja designação como “competitivo” já indica sua natureza: trata-se apenas da disputa pelo objeto amado em que o ciumento sofre pela ameaça de perda. Eu acrescentaria – por minha conta e de modo simplório – que esse ciúme brota dos instintos básicos do macho e da fêmea em busca de seus parceiros e que aflora nesses momentos em que a incerteza de conquista do parceiro parece mais insegura ou ameaçada. Assim, haveria um ciúme competitivo quando o pretendente ou o namorado de uma moça a vê conversar mais demoradamente com um rapaz qualquer. Suponho que, estabelecida uma relação estável e clara, o ciúme seria inadequado.

Entretanto, chama a atenção o fato de Freud vincular o sofrimento à “ferida narcísica, na medida em que esta é distinguível da outra ferida”.

Então destaquemos com cuidado o que ele está dizendo: a dor do ciumento é produzida por duas feridas: a da perda do objeto amado e a narcísica. Portanto, não é unicamente o fato (ou possibilidade) da perda do amado que afeta o ciumento. A sua infelicidade é causada também pelo seu narcisismo, ou seja, é a preocupação com a própria imagem que magoa o ciumento. Mais ainda: ele insinua a dificuldade de distinguir uma ferida da outra. Isso quer dizer que o sofrimento causado pelo ciúme pode ser atribuído à perda, mas pode ser, de fato, apenas um sofrimento narcisista – uma questão de preservação da auto-imagem.

Portanto, ao falar superficialmente do ciúme normal, Freud apontou – talvez sem se dar conta das implicações – que essa “normalidade” estava entranhada pelo narcisismo, que é uma forma de egocentrismo. Desse modo, a angústia do ciumento não seria causada pelo amor ao “objeto amado”, mas pelo amor a si mesmo e a sua imagem, que deixaria de estar intocada mediante a possibilidade da infidelidade.

Por essa razão, não concordo com a qualificação freudiana de “ciúme normal”, pois não se pode normalizar o narcisismo como medida do comportamento humano. Mas, a bem da verdade, deve-se registrar que Freud afirmou que: “embora possamos chamá-lo de normal, esse ciúme não é, em absoluto, completamente racional, isto é, derivado da situação real, proporcionado [penso que tradução imperfeita, seria “proporcional”] às circunstâncias reais e sob controle completo do ego consciente”. Assim, é possível supor que o termo “normal” signifique, neste caso, para Freud, apenas o que a cultura ocidental considera assim por tradição.

O ciúme projetado (o segundo tipo, na classificação freudiana) deriva, nas próprias palavras de Freud, “tanto nos homens quanto nas mulheres, de sua própria infidelidade concreta na vida real ou de impulsos no sentido dela”. Não há como não admitir essa forma de constituição do ciúme. As “tentações contínuas” (expressão freudiana) que assediam o homem e a mulher os tornam ciumentos como uma forma de autodefesa. Isso o faria aliviar a pressão das tentações: “projetar seus próprios impulsos à infidelidade no companheiro a quem deve fidelidade”.

De fato, essa situação é bastante comum. Um homem que passou a vida seduzindo mulheres comprometidas ao se vincular com alguém de forma mais firme poderá vir a ter, baseado em sua própria experiência, ciúme de sua parceira. Provavelmente ele justificará isso dizendo: “conheço bem os homens e as mulheres”. Suas experiências o fazem supor que todos os homens querem seduzir todas as mulheres e todas as mulheres são seduzíveis, sendo tudo apenas uma questão de oportunidade. De fato, os provérbios, ditos e chistes populares confirmam e consolidam essa forma de ciúme projetado, criando um clima que ajuda a reproduzir e justificar socialmente a prática desse sentimento. Quem nunca ouviu que “todos os homens são safados” ou “não existe mulher séria, só mal cantada”? E quantas comédias e filmes já não se fizeram em torno desses temas.

Freud lembra que as convenções sociais admitem certas concessões, como uma válvula de escape à pressão da fidelidade (como um pequeno flerte, por exemplo). O ciumento, porém “não reconhece essa convenção de tolerância”. Assim, esse tipo de ciúme deve ser tratado, mas o terapeuta “não deve discutir com ela [a pessoa ciumenta] o material em que baseia suas suspeitas”. Ou seja, os fatos ou suposições que fundamentam a atitude ciumenta não devem ser discutidas, pois a causa real do ciúme reside em outro lugar. Nesse caso, supõe-se que nas próprias tentações do indivíduo.

Na verdade, Freud não avança nada quanto ao tratamento que se deve dar a esse problema, concluindo somente que se deve levar o paciente a “encarar o assunto sob uma luz diferente”.

O terceiro grau é o que ele chama de “ciúme delirante” (embora o anterior também seja “quase delirante”).

(Nem tenho competência, nem me interessa questionar essa terminologia freudiana, mas deixo registrado que seus qualificativos para os graus de ciúme me parecem um pouco (?) inadequados, sobretudo os termos “normal” e “delirante”. E me pergunto se todo ciúme não seria delirante).

O “delirante” – “delirante verdadeiro” – é o ciúme do homossexual reprimido, que já se qualifica como paranoia. O que ocorre nesse tipo é uma “defesa contra um forte impulso sexual indevido”. O homem ou mulher sente a atração por uma pessoa do mesmo sexo, mas em razão da forte repressão ou escamoteamento inconsciente de sua tendência homossexual, reage ciumentamente, mas invertendo o processo. Freud resume nessa fórmula do pensar do ciumento masculino: “Eu não o amo: é ela que o ama!”

Embora Freud não tenha avançado em sua análise, pode-se deduzir que as reações desse ciumento serão simultaneamente uma forma de autodefesa, de ocultamento a si mesmo e aos outros de sua condição, e de punição ao seu parceiro por amar aquele que ele ama. Na verdade, aquele que seria o pivô de seu ciúme é o objeto amado. Assim, haveria uma situação efetivamente complexa em que pivô e objeto amado se confundem e intercambiam sendo provável que o agente sinta ciúme dos dois e os dois sejam pivô do ciúme.

Portanto, a complexidade desse gênero de ciúme se revela na própria dificuldade de definir seus movimentos. Pode ser que o agente tenha ciúme do parceiro simplesmente pelo medo de perdê-lo, o que seria o ciúme “normal”; pode sentir ciúme do parceiro, pois seria ele que devia amar o outro; o ciúme pode ser do terceiro, pois lhe parece que se interessa pelo seu parceiro. Em todas essas situações o fato é que o terceiro (que seria o pivô) exerce alguma atração sobre ele, de modo que ele imagina que se lhe interessa deve interessar também ao parceiro. Aliás, o próprio Freud diz isso ao informar que os três graus do ciúme poderão estar presentes no terceiro grau.

Eu diria que essa situação não é tão rara quanto possa parecer. Mesmo numa sociedade em que o homossexualismo adquiriu certa aceitabilidade, podendo os homossexuais identificar-se como tais, a existência de sua forma reprimida não pode ser negada e, talvez, grande parte das reações de ciúme com seus acessórios de agressividade, possessividade e quase rancor, nada mais sejam que a camuflagem de uma atração lésbica ou pederasta reprimida e inconsciente.

Não creio ser preciso acrescentar mais perspectivas teóricas. Basta o que está dito: o ciúme é um distúrbio psíquico que desequilibra o relacionamento entre as pessoas, fazendo sofrer seu agente e, de tabela, outros envolvidos, entendendo como tal não apenas o objeto e o pivô.

De fato, o ciúme – como todas as doenças que têm dimensão relacional – é um problema que deve ser abordado não apenas do ponto de vista do ciumento, mas também dos afetados por sua ação, sobretudo, aquele que é objeto do ciúme, ou seja, a vítima. É ela quem mais tem sua personalidade afetada pela ação do ciumento, provocando, inclusive, alterações essenciais no seu modo de agir e interagir.

No capítulo que segue, serão apontados alguns traços que compõem o perfil da pessoa que é objeto do ciúme. Tomo, então, como referência alguns excertos da obra Em busca do tempo perdido de Marcel Proust, que, sob certo aspecto, pode ser considerado um especialista no assunto.

 

 

3 – O ciúme e a vítima

 

Se personificássemos o ciúme, poderíamos dizer que sua vítima é o ciumento, como se usa dizer que a vítima de Cupido é o apaixonado. Mas não. O ciúme é apenas a psicopatia do ciumento e sua vítima é o objeto do ciúme.

Essa relação entre o agente e o objeto do ciúme é que é nosso eixo de análise, a partir de Proust como já foi dito.[3]

Para simplificar, vamos chamar o protagonista de Em busca do tempo perdido de Marcel. Em todos os sete “momentos” que compõem essa obra, apenas duas vezes (v. 3, p. 59 e 119)[4] aparece o nome do protagonista e, mesmo assim, sob a dubiedade do lúdico e do ludibrio, em que o autor-protagonista lança dúvidas sobre se o nome que ele pôs nos lábios de Albertine era mesmo o seu nome como protagonista-autor ou apenas um empréstimo do nome do autor para além de ambos. E poderia ser também uma confissão de identificação e distanciamento do autor com o protagonista, com aquela ambigüidade de quando o autor encarna no protagonista e o protagonista se paramenta de autor. Finíssima essa brincadeira literária! Mas não importa. Permaneceremos para sempre sem saber o nome do EU que buscava o tempo perdido, assim como não saberemos se Capitu traiu ou não Bentinho.

Desde o primeiro romance – No caminho de Swann –, o narrador registra a primeira experiência de ciúme do menino em relação à mãe. Não, ao menos explicitamente, aquele ciúme edipiano, mas, apenas, pela carência do afeto materno. O sentimento que o oprimia, assim foi expresso: “visto que essa sala de jantar, proibida e hostil, onde, há um momento apenas, o próprio sorvete – o granité – e os lavabos me pareciam encobrir prazeres malignos e mortalmente tristes porque mamãe os experimentava longe de mim” (vol 1, p. 40). Note-se como narrador articula  a sensação de “hostilidade” e “malignidade” com o fato de que “mamãe os experimentava longe de mim”. Esse é xis. O ciúme – termo  não empregado nesse momento – parece ter em todos os casos esse componente egocêntrico: o outro está sendo feliz, tendo um prazer fora do controle do ciumento.

Embora não use o termo “ciúme”, é exatamente isso o que está referido no contexto. Se não, vejamos o parágrafo seguinte em que ele compara “a angústia que acabara de sentir” (vol. 1, p. 40) com a “angústia semelhante” (ib.) de Swann, ou seja, o ciúme que este sentira por Odette. A descrição subseqüente é altamente esclarecedora:

 

[...] essa angústia que há em sentir o ser que se ama em um lugar de festa onde a gente não está, onde não é possível ir vê-lo, foi o amor que a fez conhecer, o amor ao qual está de certo modo predestinada, e que ele acaba por monopolizar e singularizar. Mas, quando no meu caso, essa angústia nos invade antes de o amor ter feito sua aparição na nossa vida, ela fica flutuando a esperá-lo, vaga e livre, sem atribuição determinada, um dia a serviço de um sentimento, no dia seguinte de outro, ora a cargo da ternura filial, ora à disposição da amizade por um companheiro (vol. 1, p. 40-41).

 

Observe-se que se atribui essa experiência ao amor, porém numa forma em que o outro é “monopolizado” (sob controle exclusivo) e “singularizado” (tornado particular, especial). Entendendo o amor como um sentimento relativo à relação homem-mulher, explica o surgimento dessa angústia na infância como uma forma “vaga e livre”. Não deixa de ser curiosa essa formulação. Acontece que o ciúme é uma angústia (perfeito esse termo) de alguém que tem uma perspectiva/ansiedade/postura possessiva para com os seres que singulariza (outra boa expressão) e essa singularização é o que o ciumento considera como prova de amor, amizade, amor filial, amor materno. Por isso, não se dá apenas no amor sexualizado (uso essa expressão para indicar aquela forma em que o componente sexual está consciente na relação, distinguindo das outras qualificações: filial, materno, amizade, caridade). O que ocorre é que o exercício do ciúme nas outras formas de relacionamento tem menos chances de progressão, enquanto numa relação que é prioritariamente a dois, como namoro e casamento, ele se impõe e expõe de forma mais clara e, muitas vezes, mais agressiva.

O causador da angústia do menino foi Swann, que será o protagonista de Um amor de Swann (segunda parte de No caminho de Swann), que tem o ciúme como centro temático e que prepara e preconiza o que será aprofundado em A prisioneira.

Resumindo a trama de Um amor de Swann: Swann é um homem inteligente, culto, sensível, bem recebido na alta sociedade, inclusive pela nobreza mais exigente e elitista. Possui um senso crítico apurado e tem fama de ser um bon-vivant, cheio de amantes belas e inteligentes. Swann tendo ouvido falar de Odette, aproxima-se dela, mas ela não é o que ele havia imaginado, sendo mesmo um tipo de mulher que não apresenta os atrativos que o interessariam em uma mulher, nem físicos, nem espirituais, nem morais. Na verdade, ela é conhecida como coquete, sendo, de fato, o que chamaríamos hoje de “garota de programa”. Swann se apaixona por ela e inicia sua tortuosa relação de amor-ciúme.

No desenvolver desse romance vão se destacando algumas das características constitutivas do ciúme. Proust, na sua peculiar forma de construir lenta, progressiva e detalhadamente as personagens, as emoções e as ideias, aborda o tema sob vários ângulos, dos quais vamos relembrar alguns.

O romancista, a partir da perspectiva de Swann, apresenta o ciúme como uma forma de paixão pela verdade:

 

[...] essa curiosidade, que sentia despertar dentro dele em relação às menores ocupações de uma mulher, era a mesma que tivera antigamente pela História. E tudo aquilo de que até então tivera vergonha, espiar por uma janela, quem sabe amanhã talvez sondar habilmente os indiferentes, subornar os criados, escutar às portas, já não lhe parecia, tanto como a decifração de textos, a comparação de testemunhos e a decifração de documentos, senão formas de investigação científica de um genuíno valor intelectual e apropriadas à pesquisa da verdade (v. 1, p. 220).

 

Portanto, nesse caso, a paixão é uma obsessão que perdeu a noção dos limites da ética ou, se nem tanto, da fineza que sempre marcara o caráter de Swann. Assim o ciúme desestrutura os valores que compõem o caráter da pessoa exatamente por ser obcecante (no sentido pleno do termo de “cegar”), fazendo-o abdicar de seus escrúpulos.

Entretanto, mesmo ciente sobre quem é Odette e sendo Swann quem é, um homem maduro, experiente, ele não consegue resolver o problema. Como Reich (citado acima) propõe, uma pessoa “genital” resolveria isso racionalmente: conversaria normalmente e, caso não restabelecesse a transparência da relação entre eles, romperia a relação ou a assumiria nos termos existentes. Contudo não impingiria a si mesmo e à parceira tanto tormento, embora, a bem da verdade, não se possa supor Odette sofrendo por isso; sua reação será de enfastiamento.

O problema dessa investigação ciumenta é que ela, por mais fundada que pareça em “fatos reais”, em comportamentos observados e suspeitos, é interminável. O que acontece é que, se o ciumento descobre que uma suspeita é infundada e fica feliz com isso, outra suspeita surgirá porque, para algumas pessoas, o amor implica numa posse e controle que não se pode ter o tempo todo sobre o outro. Pois o “ciúme, como se fosse a sombra do amor” (v. 1, p. 221), impera sobre o espírito do seu agente. Essa metáfora proustiana merece ser explicitada. Enquanto sombra, o ciúme é uma imagem imprecisa e indecisa, e que se dá do lado oposto ao da luz, portanto, um reflexo escuro. Desse modo, o ciúme seria uma forma de amor invertido. Ou seja, nem é ódio, nem desamor; é uma perversão do amor.

Em resumo, ao longo do relato sobre o amor de Swann, são ilustrados os diversos aspectos do ciúme: necessidade de poder e controle sobre o outro; a infelicidade de imaginar que o outro tenha algum prazer independente; fertilidade na imaginação de diversas alternativas de ser traído; invenção de artimanhas para descobrir a “verdade”, para pegar o outro em contradição.

Como em todo ciumento, é evidente a confusão entre amor e ciúme. Entretanto, considerando a perspectiva própria – e complexa – de Proust quanto ao amor, o amor arrefece quando numa relação “normalizada”, mas retorna aumentado quando espicaçado pelo ciúme.

Mas vejamos a reação da vítima de Swann.

Odette é a vítima do ciúme de Swann – e pouco importa que ela seja “culpada”, pois, do ponto de vista dessa opressão do ciumento, ela será a vítima. Aliás, é preciso ficar claro que o comportamento ciumento não é causado pelas ações de infidelidade ou pelas ambiguidades da vítima, como costumam alegar os ciumentos. Sobretudo nas situações em que o agente sabia antecipadamente quem era a pessoa que escolheu amar, não há justificativa para o ciúme, pois iniciou ou continuou o relacionamento cônscio de que conviveria com uma pessoa daquele jeito. Reafirmo, pois, que Odette é a vítima. Entretanto, Odette tem uma personalidade independente, de modo que Swann não consegue dominá-la.

Penso que vale a pena acrescentar alguns comentários sobre essa personagem. Ela se sustenta, desde muito nova, dos favores sexuais que concede, de onde se pode deduzir que suas afeições e carinhos são sempre interesseiros. Poder-se-ia supor também que, no momento em que ela encontrasse alguém tão pródigo para ela quanto Swann, ela lhe concederia certa exclusividade. Contudo, apesar disso e de não dispensá-lo, mantém sua independência relativa. É fato que ela não o ama, mas nem mesmo as razões de ordem prática ou financeira a fazem submeter-se, para desespero de Swann. Odette coloca seus prazeres pessoais acima de sua relação com Swann, mas cuida para que não haja uma ruptura definitiva. Desse modo, a despeito dessa relativa autonomia, ou seja, de sua não-subordinação ao ciúme de Swann, ela também fará concessões a essa dominação, reproduzindo alguns comportamentos típicos das vítimas dos ciumentos.

Odette, em vista de sua duplicidade, mentirá sempre, embora não seja muito convincente, pois Swann sempre perceberá suas mentiras. Nesse gênero “mentira”, podem-se incluir diferentes comportamentos: contar as coisas de forma incompleta, fornecer informações imprecisas, evitar tocar em certos assuntos, evitar dizer os nomes de certas pessoas, esconder certos acontecimentos, etc..

Em Odette, a dissimulação é uma decorrência de sua necessidade de ocultar a infidelidade. Entretanto, é comum a dissimulação entre as vítimas do ciúme, mesmo as injustamente suspeitas.

Essa personagem pode revelar também um outro aspecto do comportamento da vítima. Refiro-me à manipulação. Há casos em que as vítimas tiram proveito desse ciúme, com a finalidade de tornar o ciumento mais dependente, numa espécie de jogo em que se sabe que, quanto mais ciúme despertar, mais o ciumento circundará e tentará prender o seu objeto – e assim ele está preso. Nesse caso, a vítima tira vantagens daquilo que seria sua opressão. Odette, em algumas ocasiões, usa desse artifício, bem como muitas pessoas na vida real.

O final do romance entre Odette e Swann é conhecido. Aos que não o conhecem, não contarei. Leiam Um amor de Swann.

Passemos, agora, a tratar da relação entre Marcel e Albertine, centrando-nos sobretudo em A prisioneira.

Antes de avançar, porém, convém citar um texto de Proust que lembra a conhecidíssima análise de Hegel sobre a relação entre senhor e escravo, onde, dialeticamente, o senhor torna-se, de certa forma, escravo do seu escravo. Encontra-se em A prisioneira.

Após uma demonstração de submissão de Albertine, namorada do narrador-protagonista, este comenta:

 

[...] pois os deveres e os encargos de um senhor fazem parte de sua dominação e a definem e provam, tanto quanto os seus direitos. E esses direitos que me reconhecia dava precisamente a meus encargos o seu verdadeiro caráter: eu tinha uma mulher à minha disposição, a qual, ao primeiro recado que lhe enviasse de improviso, mandava-me telefonar, com deferência, que voltava, que se deixava conduzir logo. Eu era mais senhor do que julgava. Mais senhor, isto é, mais escravo (v. 3, p. 119).

 

Essa relação de senhorio-submissão refletida aqui não se refere somente ao fato de Albertine depender financeiramente de Marcel. A razão principal reside no fato de ela precisar lidar com o ciúme de Marcel, o qual, aliás, é a razão pela qual ele decidiu trazê-la para sua casa. Assim a vítima torna-se escrava do ciumento, mas, simultaneamente, o ciumento é escravo da vítima. Constitui, pois, uma ligação doentia, na medida em que não é um intercâmbio que se dá dentro dos parâmetros da liberdade e da espontaneidade. De fato, o que ocorre é que um não consegue se livrar do outro, mesmo que não sintam mais prazer em estar juntos. Acontece, assim, um convívio torturante para ambos. Mesmo que se amem, ou que apenas um deles ame o outro (e, quantas vezes, o ciumento não alega em sua defesa o fato de amar e a vítima não faz o mesmo, dizendo que só suporta os acessos de ciúme do parceiro por amor?), não é mais o dinamismo do amor que conduz a união, mas a tirania do ciúme.

O caso de Marcel e Albertine, embora ficcional (e até onde será?), reproduz situações observáveis de submissão patológica que ambos os parceiros são incapazes de interromper. Apesar de não confiar no parceiro – por isso, o ciúme, o controle, a vigilância –, o enciumado mantém-se ligado ao outro de uma forma irracional, já que o razoável seria o afastamento. Por outro lado, o objeto do ciúme, seja por vaidade, seja por medo, seja por falta de alternativas, seja por necessidade de comprovar sua fidelidade sob suspeita, seja enfim por mil razões, não consegue se desvincular do ciumento. Mesmo que haja amor – repito – e mesmo que ambos jurem esse amor, não é essa a razão que os mantém unidos, mas a tirania do ciúme.

Convém, neste ponto, resumir como se construiu em Em busca do tempo perdido, o relacionamento entre Marcel e Albertine.

Marcel, ainda adolescente, vê passar em frente ao hotel onde se encontra um grupo de moças que lhe chamam a atenção. Interessa-se alternadamente por algumas dessas moças, até se tornar mais próximo de Albertine. Anos mais tarde, Albertine torna-se sua namorada, passeiam e freqüentam rodas sociais juntos. A certa altura, Marcel começa a perceber que não está apaixonado por Albertine e que deve interromper esse namoro, o que ele espera fazer no momento oportuno. Continuam a sair juntos e, numa noite, em que estavam num salão de danças, enquanto ele conversava com um conhecido e Albertine dançava com uma amiga, o seu interlocutor faz uma observação insinuando que Albertine poderia ser lésbica. A partir de então, Marcel vai se tornando cada vez mais atormentado com essa possibilidade e, ao invés de romper o namoro, como havia planejado, convida-a para ir morar na casa dele em Paris. A prisioneira narra essa época.

Portanto, não é o amor que faz com que Marcel “prenda” Albertine a si, fato que é reconhecido pelo protagonista-autor diversas vezes. É o ciúme – esse estranho ciúme que acende o “amor” – que o impulsiona a retê-la. Durante esse romance, evidentemente, o tema do ciúme é reapresentado com a finura, a perspicácia e a sutileza literária de Proust. Não vamos retomá-lo aqui, pois não acrescentam qualquer conceito novo, além do que já dissemos anteriormente. Vamos, pois, nos concentrar na vítima. Ressalte-se somente que, para Proust, “o ciúme é uma dessas doenças intermitentes, cuja causa é caprichosa, imperativa, sempre idêntica no mesmo doente, às vezes completamente diversa em outro” (v. 3, p. 26). Mas, para ele, também o amor é uma doença.

Apesar das suspeitas e dos muitos indícios que levam Marcel a pensar que Albertine é lésbica, nada há que confirme isso. Muito provavelmente, não o era, mas se submete à opressão de Marcel. Por amor? Por interesse? Por falta de alternativas? Essa convivência leva-a também à dissimulação, não como a de Odette, mas, como a de muitas vítimas de ciúme que se adaptam, mesmo sofrendo imerecidamente a desconfiança, ao clima imposto pela opressão do ciumento.

A vítima, para evitar confrontos e aborrecimentos desnecessários, terá freqüentemente que disfarçar suas intenções, mas que o agente (que está em permanente estado de alerta) percebe. Assim acontece com Albertine:

 

Essas noites agora eram aquelas em que Albertine formara, para o dia seguinte, algum projeto que não queria que eu conhecesse [...] Naquela noite, Albertine no entanto foi obrigada a me dizer uma palavra acerca do projeto que havia formado [...] Mas com certeza era para ter lá algum encontro, preparar algum prazer. Se não fosse isso, não faria tanta questão dessa visita. Quer dizer, não teria repetido que não se empenhava por ela (v. 3, p. 68).

 

Estamos vendo o relato sob a ótica do ciumento, então temos os fatos e a interpretação: Albertina demora a lhe dizer que tem um projeto (visitar a Sra. Verdurin) e, ao dizer, realça que não tem importância para ela, mas, de fato, tem. Mas ela não pode dizer isso porque atiçaria o ciúme de Marcel (lá compareceria uma lésbica conhecida, o que ela não conta). O fato de não contar (mais tarde, ele fica sabendo dessa convidada) não quer dizer que ela tenha algo a ver com aquela convidada da Sra. Verdurin. Sua omissão parece ser apenas para evitar o desgaste da reação do namorado. Contudo, exatamente por essa omissão, as suspeitas dele ganham mais força.

Há, pois, uma ambiguidade insanável nessa relação: o que diga ou o que deixa de dizer, sempre será usado contra a vítima.

Como o ciúme estabelece uma relação anômala, a mentira estará sempre presente, mesmo no caso em que a pessoa que é objeto do ciúme seja inocente, o que é bem expresso (embora não se possa ter certeza da inocência de Albertine) nessa afirmação: “Quando lhe minto, é sempre por amizade a você” (v. 3, p. 253). A ideia é visivelmente ambígua: tanto o “culpado” quanto o “inocente” podem empregá-la naturalmente. O “culpado” poderá mentir para não provocar sofrimento no parceiro confirmando suas suspeitas. O “inocente” mentirá para evitar que o parceiro sofra em razão de um ciúme sem sentido. E ambos (adotando a postura negativista de Proust em relação a amor e amizade) estarão aí também preservando seus próprios interesses.

O fato é que o ciúme, por sua intrínseca postura policialesca, induz a vítima à mentira como uma forma de autodefesa para a preservação do mínimo de espaço próprio, pois – recorde-se – o ciumento quer o absoluto controle sobre o outro, que é uma forma de invasão.

Assim, além das mentiras verbalizadas e das omissões de informação, a vítima também tentará ocultar o sentido de seus gestos, disfarçar a direção de seus olhares e esvaziar a expressão de seu rosto. Assim observa Marcel em Albertine:

 

E desde algum tempo, desde que sem dúvida me adivinhara o pensamento, nenhum pedido para convidar ninguém, nenhuma palavra, nem mesmo um desvio de olhar, que se tornara silencioso e sem finalidade, e com a fisionomia distraída e vaga de que eram acompanhados, tão revelador como outrora a sua magnetização [quando observava fixamente moças que passavam] (v. 3, p. 69).

 

E pouco adiante, um parágrafo desenvolve uma complexa reflexão a respeito disso e que mais retrata as deduções de Marcel que a índole de Albertine:

 

Para retornar às jovens passantes, Albertine jamais teria olhado para uma senhora idosa ou um velho com tanta fixidez ou, pelo contrário com reserva e como se não os visse. Os maridos enganados que não sabem de nada, ainda assim sabem de tudo. Mas é necessário um dossiê mais materialmente documentado para estabelecer uma cena de ciúme. Além disso, se o ciúme nos ajuda a descobrir, na mulher que amamos, uma certa propensão a mentir, ele centuplica essa propensão quando a mulher já descobriu que somos ciumentos. Ela mente (nas mesmas proporções em que nunca mentiu antes), seja por piedade ou por medo, ou se furta instintivamente por uma fuga simétrica às nossas investigações. Decerto existem amores em que, desde o começo, uma mulher leviana afetou ser virtuosa aos olhos do homem que a ama. Mas quantas outras compreendem dois períodos perfeitamente contrastantes! No primeiro, a mulher fala quase com facilidade, com simples atenuantes, sobre seu gosto pelo prazer pela vida galante que ele lhe proporcionou, coisas essas que negará inteiramente a seguir, com a máxima energia, ao mesmo homem, mas porque o percebeu enciumado dela e a espioná-la. Ele chega a ter saudades do tempo daquelas primeiras confidências, mas cuja lembrança o tortura (v. 3, p. 70 – obs.: no último período mudei o pronome pessoal para o masculino “ele”, no texto de base estava no feminino, o que não faz sentido).

 

Resta claro desse excerto o quanto o ciúme induz à mentira, “por piedade ou por medo”, e, nos casos das pessoas previamente mentirosas, “ele centuplica essa propensão”. O que acontece é precisamente isso: “uma fuga simétrica às investigações”, que não tem nada a ver com culpabilidade.

Um outro comportamento que ocorre com a vítima na maior parte dos casos, sendo Odette e suas semelhantes a minoria, é a subserviência ao ciumento que se expressa na tentativa de recuperar a confiança a qualquer custo. Assim o que é dito sobre Albertine pode ser aplicado a muitos casos:

 

A partir daquela noite, Albertine não me contou mais o que ela havia feito no passado: - Sei que você não tem confiança em mim, vou tentar dissipar suas suspeitas. - Mas esta ideia, que ela nunca exprimiu, poderia servir de explicação para seus menores atos. Não só ela manobrava no sentido de jamais estar um momento sozinha, de modo que eu não pudesse ignorar o que havia feito, caso não acreditasse em suas próprias declarações, mas até quando precisava telefonar para Andrée ou para a garagem, ou para o picadeiro, alegava ser muito aborrecido ficar sozinha telefonando [...] (v. 3, p. 273).

 

Esse comportamento não é indício de inocência, mas revela a importância que o parceiro tem para a vítima e pode ser um sinal de que, se ela agiu conforme suspeitado, ela não o faz mais. Essa submissão deveria aplacar o ciúme, mas isso nunca ocorre. É o mesmo que acontece com a vítima que “confessa” coisas do passado (e até falsamente) na esperança de normalizar a relação daí em diante, o que não acontecerá.

Não é rara essa postura. Quem não conhece alguma mulher que não compra ou não usa certo tipo de roupas porque o marido vai ficar com ciúme? É uma forma de ação preventiva (para evitar aborrecimento ou para comprovar fidelidade), que pode até se virar contra ela. E são conhecidos também os casos de “confissões” falsas numa vã tentativa de acabar com o ciúme do parceiro. Conheci um casal em que o namorado desconfiava que a namorada tivera relações sexuais antes de se conhecerem. O namorado insistia repetidamente nessa suposição, pedindo que ela confessasse,  sob a promessa de que nada mudaria entre eles e acabaria com aquela dúvida. A moça acabou confessando, embora nunca tivesse feito nada, e sua vida tornou-se um inferno.

Qual o fim desse tipo de convivência?

Na atualidade, o mais comum tem sido o rompimento. Em tempos passados, nem sempre isso era possível, sobretudo no casamento. Não era raro – e ainda não o é tanto quanto se desejaria que fosse – que acabasse em homicídio. O rompimento ocorre quase sempre por parte da vítima e, pior ainda, pela fuga, desde que qualquer diálogo com o ciumento tornou-se inviável. Foi o que aconteceu com Albertine, depois de se dar conta (enfim!) de que Marcel não se curaria do seu ciúme por mais provas de amor, fidelidade e amizade lhe fossem dadas.

A fuga de Albertine é, quase sempre, a solução para tais casos. Primeiro, porque o ciumento nunca libera a vítima. Como um torturador, ele está convencido de que o prisioneiro é culpado e que este só confessará sob tortura. Assim ele manterá a vítima a seu lado até conseguir a verdade. Portanto, não há alternativa para a vítima, a não ser fugir.

A imagem da fuga funciona, pois, como um protótipo do final desse tipo de relacionamento. Mesmo quando a ruptura é realizada de modo mais civilizado (digamos assim), o comum é que a vítima queira a maior distância possível do seu algoz. Raramente, acontecem casos de uma convivência amigável.

Que o fim seja pacífico e tranquilo é raro, pois isso dependeria de que o ciumento deixasse de ser do jeito que é. Na lógica distorcida de Proust, a relação só seria normalizada quando o amor acabasse, desde que, para ele, amor e ciúme se confundem.

Evidentemente, não é o que pensamos, como deve ter restado claro. O amor implica respeito à liberdade e à intimidade do outro. Em hipótese alguma será possessivo e controlador.

Parodiando o apóstolo Paulo que disse que o “amor não é invejoso”, ouso substituir a inveja por seu irmão siamês e dizer que o amor não é ciumento.

 

 

Conclusão

 

Como deve ter ficado claro, defendo a tese de que o ciúme é sempre uma patologia. Devo ressalvar, contudo, que episódios de ciúme atiçados por certas circunstâncias não cheguem a configurar uma anomalia, ou seja, embora sempre impliquem uma certa dose de narcisismo (como dizia Freud), um ciúme eventual e passageiro não denota uma personalidade doentia. O problema se dá quando isso torna constitutivo, isto é, permanente, do relacionamento pessoal. E, aí, não importa se esse sentimento só se refere a apenas um objeto ou a todos os objetos sob a abrangência do agente.

Enquanto distúrbio que se dá no interior de um indivíduo e que afeta substancialmente seu relacionamento com os outros em geral e com o seu parceiro, de modo especial, o ciúme deve ser tratado como uma patologia.

É essencial também não menosprezar o grau de risco social que essa patologia contém. Não foi à toa que a Didaquê (= Instrução dos doze apóstolos, obra do século II, atribuída aos apóstolos, que era uma orientação simples e prática para a vida cristã), citada na epígrafe desta análise, alerta que o ciúme pode gerar o homicídio. Por isso, é indispensável que o ciúme seja levado a sério e os ciumentos sejam submetidos a terapias adequadas.

Como em quase todas as doenças, pode-se dividir o ciúme em diversos graus de gravidade. Entretanto, neste caso, a gravidade não se dá apenas pela evolução da doença, como ocorre na maioria delas. Pode-se observar que há pessoas que têm a síndrome do ciúme mais forte desde seu início, enquanto outras sempre o terão numa forma mais leve. Contudo, não se deve descartar que o ciúme também possa se agravar, tornando-se mais nocivo e perigoso, ao longo do tempo.

Uma discussão que permanecerá em aberto é sobre o que causa o ciúme em determinados indivíduos. Os ciumentos sempre alegam que seu comportamento surgiu devido a algum fato externo, ou seja, o parceiro é que deu motivo a isso ou porque o traiu de fato ou porque se comportou de forma que sugeria a traição e muitas outras explicações nessa linha. Alguns dizem que a razão está na grandeza do amor que sentem pelo outro: “não posso viver sem você”; “minha vida perde o sentido sem você”; “você é tudo pra mim”, etc..

Embora um fator externo real ou imaginário possa desencadear as reações ciumentas, a origem do ciúme está no interior do próprio agente, consistindo num desequilíbrio de percepção do Ego do ciumento na sua relação com o outro. Proust mesmo reconhece isso em vários momentos, relacionando-o com amor-próprio e vaidade, chegando a empregar o termo “egotismo”. O ciúme é um desequilíbrio da personalidade que consiste na superestimação do próprio ego, exacerbação do amor-próprio, que, em última instância, seria uma forma de vaidade. Explico: o ego do ciumento considera-se no direito de ter absoluto controle sobre o outro e considera que ser “traído” é uma grave ofensa a sua pessoa, pois o expõe ao ridículo, à chacota alheia. Ora, a vaidade (soberba) é exatamente isso: a ânsia de controle absoluto sobre todas as coisas, como Adão e Eva no paraíso ao comerem da fruta da ciência do bem e do mal, sob a promessa de poderem controlar os mistérios da vida. E, em segundo plano, a vaidade vem a ser o excesso de preocupação com a própria imagem. No ciúme estão, pois, presentes os dois sentidos principais da vaidade representados por duas imagens mitológicas das mais populares que existem: a da Serpente, que simboliza a tentação de poder total, e a de Narciso, representando a adoração da própria imagem.

Entre os vários fatores causais, deve-se citar também a insegurança do indivíduo que pode se configurar  de diversas maneiras. O agente se considera incapaz de oferecer todo prazer ou felicidade de que o outro precisa. Assim, sente-se incompetente sexualmente, financeiramente, culturalmente, ou aquém das necessidades do parceiro. Em casos extremos, de típica insegurança machista, o homem teme que a mulher tenha prazer e que esse prazer a leve em busca de mais prazeres. Não é tão distante o tempo em que a mulher “de casa” só devia praticar sexo para prazer do marido e para procriação, sendo vergonhoso que a mulher manifestasse orgasmo e, caso isso acontecesse, alguns homens entravam em pânico e iniciavam a fase do ciúme. De qualquer modo, também nesse caso, o que ocorre é uma percepção inadequada do Ego.

O fato é que o ciúme causa no agente fim do respeito pelo outro, falta de escrúpulos na busca da sua verdade, etc., que já referimos acima.

A terapia, portanto, deve encontrar uma via pela qual o ciumento identifique em seu interior, em sua percepção de si mesmo, onde está e em que consiste o desequilíbrio que o leva a tais atitudes.

Da mesma forma, a vítima tem necessidade de terapia por duas razões. Primeiro, para superar os traumas psíquicos que acumulou durante o tempo da tortura, que alterou seu comportamento durante aquele período e, talvez, para sempre. Segundo, para investigar a causa de sua sujeição e tratá-la adequadamente para que não se repita.

Por último, quero sugerir que, assim como a sociedade tem consciência do perigo que a inveja representa, entenda os riscos e males que estão contidos no ciúme e deixe de ser complacente com essa doença.

 

 

AGRADECIMENTO

A Janine Venturini de Rezende, estudiosa de Freud, pós-graduada em Teoria Psicanalítica, pela gentileza na leitura desse ensaio e pelas pertinentes observações que me ajudaram a ajustar algumas afirmações.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

REICH, Wilhelm. Análise do caráter. Martins Fontes,cap. Da psicanálise à biofísica orgônica.

PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. Tradução de Fernando Py. Rio de Janeiro: Ediouro. 2002.

 



[1]    Conferir referência ao final.

[2]   Adotei o texto de uma cópia xerográfica. Assim não me é possível citações mais precisas, mas esse artigo é conhecido.

[3]   Não pretendo fazer uma análise sistemática sobre o ciúme em Proust. Há um ótimo estudo sobre esse tema desenvolvido por Nicolas Grimaldi: GRIMALDI, Nicolas. O ciúme: estudo sobre o imaginário proustiano. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

[4]   Para simplificar as citações de Proust, usarei sempre esse sistema: v. refere o volume, e p. refere a página ou páginas, tendo como base a obra citada nas Referências Bibliográficas. Nessa tradução, a obra foi editada em três volumes.